A ATUALIDADE DE GIL VICENTE

OESP  

 

     Gustavo Franco declarou a Eliane Cantanhêde que teoria econômica nenhuma explica o que está acontecendo nas bolsas. Franco entende de economia e eu não. Se afirma o que disse, é porque está perplexo. Se está nesse estado – embora sempre alerta para defender o real – é porque não encontra livro que lhe permita elaborar uma explicação para o que está acontecendo.

 

    Como não sou economista e não tenho obrigação de dizer coisas sensatas sobre o assunto, mas sinto que a confusão é geral, meto minha colher torta nesse angu. Há alguns anos, para uma platéia de executivos gaúchos – que não levaram a sério o que lhes disse -, procurava chamar sua atenção para um fato estranho, que à época se chamava “take-over bid”. Não eram “assaltos especulativos” contra moedas, mas eram assaltos violentos contra empresas de porte. Se elas valiam 10, oferecia-se 20 e se as comprava. Depois, fatiavam-se suas divisões, vendiam-se as fatias e ao fim da operação, quando os títulos do Tesouro norte-americano davam uns 10% de rendimento ao ano, a operação rendia aos audazes às vezes até 30%. Era um negócio da China. Num desses “take-over”, a empresa, muito grande, foi comprada por 19 bilhões de dólares daquela época. A operação não criou um único emprego, não resultou no aumento da produtividade, nada, absolutamente nada. Apenas rendeu dinheiro para quem tinha comprado – sem dizer para os que tinham vendido. Em outras palavras, e segundo as velhas teorias que hoje não explicam coisa alguma, 19 bilhões de dólares não geraram um centavo de valor e não agregaram um dólar ao PIB, mas renderam um monte de dinheiro a quem fez o negócio. À época, o caso dos “take-over” foi tido como mera especulação de aventureiros. Como sou leigo, concordei em que de fato havia aventura nessas operações, mas tive a intuição de que deveríamos refletir sobre o fato de que havia dinheiro circulando pelo mundo – e muito dinheiro – que não tinha relação alguma a ver com fábricas, escritórios e bancos. Dinheiro que não criava valor – ou se quisermos, que não tinha nada a ver com o reino da produção de bens e serviços.

 

    É por isso que não há teoria econômica que explique o que está acontecendo. As teorias econômicas foram feitas para explicar a economia – inicialmente a economia política. Cuidavam, pois, de explicar o que se passava no domínio da produção de bens e serviços. Depois, sofisticaram-se para explicar o movimento do dinheiro ligado à produção de bens e serviços.Depois, quando veio essa coisa estranha chamada globalização, a economia – já não mais política – cuidou de explicar o fenômeno, que ainda estava e está ligado à produção de bens e serviços, à criação de valor. O que está acontecendo, hoje, é a continuação do que começou com os “take-over bids”: uma boa parte do dinheiro em circulação não tem mais ligação com a produção. Antes, bens e serviços tinham necessidade de transformar-se em moeda para que se pudesse produzir mais bens e serviços – evidentemente, havia gente que ganhava, e assim permitia que se escrevesse sobre a classe ociosa. Hoje, bens e serviços ainda necessitam transformar-se em dinheiro para que se possa continuar produzindo bens e serviços, mas há uma fábula de dinheiro que necessita, apenas, produzir mais dinheiro. Dinheiro que nem papel é. É uma assinatura num compromisso ou um registro codificado num computador.

 

    É por isso que nós, que não entendemos dessas coisas, estamos perplexos. Nós, mulheres e homens simples, nós precisamos trabalhar, criando valor, para comprar bens e serviços. Mas há os que trabalham – e como!, morrendo talvez até mais cedo – para produzir dinheiro, apenas dinheiro, cada vez mais dinheiro. Creio que era de Gil Vicente o personagem que dizia: “Eu hei nome todo mundo/e meu tempo todo inteiro/sempre é buscar dinheiro/e sempre nisso me fundo”.

 

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