ANEXO à Conferência “Obstáculos à modernização do Exército”

Centro de Estudos Estratégicos do Exército, Brasília, 27/03/2007 

 

      Para que o planejamento estratégico do Exército possa ater-se às realidades geoestratégicas, será necessário, a meu ver, considerar também o panorama global. Sem preconceitos. Abaixo, busco fazer um retrato da atual configuração mundial. Pela exigüidade de tempo, não me seria possível fazer essas considerações na exposição geral. Deixo-as como um anexo.

 

     Como se caracteriza o cenário internacional, hoje? Pela existência de uma megapotência que tem como princípio fundante de sua política externa o rebus sic stantibus, isto é, que os acordos são respeitados desde que as circunstâncias de hoje sejam as mesmas de quando foram assinados. A adoção (ainda que na prática e não declaradamente) desse princípio pelos EUA, leva, na sua extremidade, a que o Governo norte-americano se oriente pela máxima quod principi placuit habet vigorem, vale dizer, “o desejo do príncipe é lei”. Esta é, podemos dizer, uma política de Estado sobre a qual o Brasil (ou até mesmo uma grande potência) não tem condições de intervir nem de contribuir para alterá-la. Essa posição diante do Direito Internacional já era visível no Governo Clinton — com a diferença de que não se lhe apresentou situação alguma em que o princípio Pacta sunt servanda — os pactos devem ser respeitados — pudesse ser violado. Não podendo intervir para alterar, cabe-nos registrar que a política externa dos Estados Unidos é orientada pela defesa e afirmação de seus interesses, de sua segurança e de seu comércio e ter esses fatos presente quando da elaboração de qualquer plano estratégico nacional. O que implica não se debruçar sobre a guerra do Iraque como se fosse o único fato importante depois do desaparecimento da União Soviética — sem, no entanto, esquecer a lição do que representa para um exército a falta de planejamento político-militar e uma política que coloca as razões do Civil acima das razões do General, subordinação que Clausewitz já condenara. 

 

     O que deve merecer atenção, pois, é o quadro geoestratégico geral de que fazem parte, evidentemente, os Estados Unidos e sua política.

 

     Encerrada a Guerra Fria, tendemos todos a acreditar que as tensões em que o mundo vivera de 1945 a 1981 tinham desaparecido e que a Rússia, sucessora da União Soviética, não mais representava risco para a segurança da Europa. O interregno Yeltsin apenas confirmou essa suposição, como se viu no episódio da intervenção da OTAN na antiga Iugoslávia, quando o apelo ao pan-eslavismo não motivou os russos a intervirem em defesa dos sérvios atacados pela OTAN. O fato com que nos defrontamos hoje, frustrando expectativas e aumentando receios, é que a OTAN estendeu seu manto protetor para países do ex-sistema soviético e está instalando sistemas antimíssil na fronteira leste dos países da União Européia. As últimas manifestações de Putin, estranhando mais uma vez, melhor seria dizer advertindo novamente os Estados Unidos e a OTAN dos inconvenientes (para dizer o menos) dessa política de defesa indicam que a segunda potência nuclear do mundo sente-se novamente cercada. É importante lembrar que muitos dos que analisaram as origens da Guerra Fria atribuem a posição de Stalin ao temor de que a URSS estivesse sendo cercada pelos Estados Unidos. Não deveremos, pois, estranhar, se a Guerra Fria, como um raio num dia de céu azul, voltar a governar a política externa de muitos países. É uma eventualidade para não ser desprezada. Não nos esqueçamos da lição do General Beaufre: a de que, um dia, o “acontecimento” poderá nos surpreender — seja a queda do Muro de Berlim, seja Pearl Harbour. 

 

     Na Ásia, a China aparece como potência tecnologicamente avançada no setor militar. Os últimos progressos nesse campo — a anunciada destruição de um satélite — começam a causar preocupação nos Estados Unidos. Não devemos nos esquecer de que a questão de Taiwan não está resolvida. Da mesma maneira, é preciso levar em conta a aliança estratégica Pequim-Moscou. Por outro lado, o Governo de Pequim desenvolve uma política externa que visa, em primeira instância, a garantir o fornecimento de matérias primas necessárias a manter o ritmo extraordinário de seu crescimento econômico — política de garantia de fornecimento também executada por companhias e Governos ocidentais. A penetração chinesa na África, inclusive Moçambique e Angola, é fato geopolítico da maior relevância para quem pensa em fazer uma diplomacia ativa voltada à África. 

 

     O acordo nuclear Estados Unidos-Índia alterou o quadro estratégico na Ásia, na medida em que Nova Delhi poderá desenvolver sem restrições seu programa nuclear militar. Deve considerar-se, também, que a Índia é hoje um dos grandes centros de conexão da Web, o que ao mesmo tempo lhe dá poder e a torna dependente, do ponto de vista econômico-financeiro, daqueles a quem serve. 

 

     A África aparece como um continente humanitariamente perdido — exceto talvez os países situados ao Norte. Não há evidência de esforços da comunidade internacional para buscar resolver os graves problemas sanitários e de saúde que afligem a África. O êxodo ainda é um problema para a Europa, já às voltas com imigrantes vindos do Leste Europeu. As restrições européias poderão desviar o fluxo migratório. Se assim for, e considerando-se que o crime organizado explora também a miséria de seres humanos que buscam melhores condições de existência em países desenvolvidos, não será de estranhar — numa perspectiva de 15 anos — que assistamos de novo ao trágico espetáculo dos navios negreiros, em sua versão do século XXI, singrando o Atlântico Sul. 

 

     O Oriente Próximo e o Oriente Médio (convém restabelecer a antiga distinção geográfica) são grandes incógnitas. Geoeconômica e geoestrategicamente, a crise com o Irã deve merecer desde agora atenção tendo-se em vista as repercussões no Brasil e neste mundo que se diz globalizado de novo conflito de grandes proporções na região, envolvendo os Estados Unidos e os países produtores de petróleo. Essas repercussões podem afetar o abastecimento de petróleo, além de obrigar o País a atender às determinações da ONU, aplicando sanções — como já faz com equipamentos que podem ser usados em programas nucleares — econômicas e até diplomáticas. É preciso estabelecer a relação Custo/Benefício de seguir as decisões da ONU, tendo em vista a posição dos países árabes e do Oriente Médio. A Rússia continua tendo interesses na região e não veria com bons olhos que, nela, os Estados Unidos afirmassem a sua presença, desde o Paquistão até o Norte da África. A crise com o Irã, além da continuação da guerra civil no Iraque, deve merecer especial atenção dos órgãos brasileiros encarregados de planejar, especialmente no setor energético.

 

     Os Estados Unidos são o maior mercado do mundo — 400 bilhões no mínimo de déficit na sua balança comercial. A maior potência militar do mundo. Como acentuamos, sua política externa rege-se pelo princípio de defesa do território, de sua segurança e da garantia de seu comércio com o mundo. No que diz respeito à América Ibérica, é necessário acompanhar os fatos que ocorrem na América Central e nas Antilhas e que podem, eventualmente, afetar a segurança territorial ou política dos Estados Unidos. O comércio com a América Ibérica, necessário para muitas companhias norte-americanas, não é motivo de preocupação primeira para o Governo dos Estados Unidos. 

 

     Pensemos um momento na América Ibérica, especialmente a do Sul, que é o que deve interessar prioritariamente ao Exército Brasileiro no seu planejamento estratégico.

 

     Embora não queira voltar à “teoria do cerco” que se elaborou em alguns círculos militares no início dos anos 1970, não devemos perder de vista que o Brasil está na desagradável situação geopolítica de ter dez vizinhos. Nos círculos dirigentes e intelectuais de alguns deles, a idéia que se faz do Brasil é a do Império do século XIX, hostil, portanto. O número de vizinhos merece atenção porque há, entre eles, alguns que apresentam situações econômico-sociais, portanto políticas, se não instáveis, pelo menos preocupantes. Preocupantes no que tange ao fornecimento de energia para o Brasil. O fornecimento de energia indispensável ao consumo brasileiro, industrial e residencial, depende em cerca de 10% ou mais da política de países vizinhos: Venezuela, Bolívia, Paraguai: no Sudeste e no Centro Oeste, o fornecimento de energia elétrica ou gás para as indústrias e residências é assegurado pela eletricidade gerada em Itaipu e pelo gás que vem da Bolívia. A incerteza que acompanha o fornecimento de gás pela Bolívia é fato do nosso dia a dia. No Paraguai, os candidatos à Presidência (eleições em 2008) já levantaram a bandeira do combate ao “imperialismo brasileiro” e da necessidade de rever as tarifas de Itaipu e também de resolver o problema da dívida paraguaia com o Brasil. Igualmente grave, começam a discutir a presença de 800 mil brasileiros que cultivam a terra em regiões que dizem ser de fronteira. Quanto à Venezuela, não há ainda indícios de que a execução do acordo que fornece energia para Roraima venha a enfrentar por ora obstáculos políticos. 

 

     Outro fato que merece atenção — e diria redobrada — é que a Venezuela realiza um esforço armamentista que aparentemente não se vincula a qualquer perigo que o Estado venezuelano esteja efetivamente enfrentando — esforço diante do qual a anunciada compra, pelo Brasil, de aviões Mirage-2000C não tem qualquer sentido defensivo. Ao mesmo tempo, o ingresso da Venezuela no Mercosul criará para o Brasil situação delicada quando o bloco regional tiver de realizar, com os Estados Unidos e a União Européia, negociações cuja conclusão pode nos ser útil, mas poderá também não interessar à Venezuela — já não digo à Argentina…

 

     É o caso de perguntar que sentido tem a política que Chávez desenvolve, que entende pela “revolução bolivariana” e qual a relação que a política e a revolução têm com os armamentos que está adquirindo na Rússia.

 

     Há quem veja Chávez como mais um populista a perturbar o ingresso e a atuação de empresas estrangeiras na Venezuela e, se tudo der certo, na América do Sul. A maneira gentil pela qual tratou as empresas petrolíferas européias que nacionalizou indica que não quer complicações com a União Européia. Classificá-lo como populista faz dele um político como outro qualquer. Uma observação atenta de seus atos, no entanto, mostraria que estamos diante de um governante que tem uma estratégia, traçada por ele, sozinho, ou por ele mais seus assessores.

 

     Observe-se que ele não agride os Estados Unidos naquilo que afetaria os interesses norte-americanos: o petróleo. Dir-se-ia que não o faz porque também depende do mercado norte-americano. A observação deve ser qualificada: o petróleo é uma commodity livremente negociada, como as demais commodities, no chamado mercado spot. Ele poderia colocar parte do petróleo destinado aos Estados Unidos nesse mercado, ainda que perdendo algum dinheiro — não muito dado o alto preço do barril do bruto. Não o faz porque não deseja provocar o leão com vara curta… Ao mesmo tempo, serve-se do petróleo para financiar passos da revolução bolivariana e garantir a compra de armamentos da Rússia. 

 

     Dizer que os planejadores venezuelanos não sabiam de certeza sabida que os Estados Unidos não permitiriam a venda dos Tucanos da Embraer nem dos aviões e lanchas espanholas, dizer isso a sério é passar a cada um desses planejadores um atestado de, pelo menos, ingenuidade. Para todos os efeitos de propaganda e tomada de posição em foros internacionais, a Venezuela pretendeu realizar seu esforço de reequipamento de suas forças armadas em países “ocidentais”, amigos dos Estados Unidos. Foi o “não” norte-americano — inviabilizando negócios muito proveitosos ao Brasil e à Espanha — o que levou Caracas a negociar com a Rússia. Do ponto de vista da propaganda, um passo acertado. O que leva a pensar que desde o início Chávez pretendeu armar a Venezuela nos arsenais russos. 

 

     Esse é ponto que deve ser considerado. Outro é saber a razão que o leva a reequipar a Força Aérea e a Infantaria com armas modernas, possivelmente sem equivalente nos arsenais sul-americanos. A compra de cem mil fuzis e o acordo para construir na Venezuela instalações industriais para fabricá-los indicam claramente uma intenção agressiva — ainda que o pretor não deva julgar das intenções. A hipótese, absurda, de que estaria se preparando para um ataque norte-americano só se sustenta se estiver prevendo um desembarque e preparando suas milícias para uma resistência prolongada. Essa hipótese de guerra, repito, é absurda, especialmente agora que as lições do Iraque começam a ser absorvidas pelo Pentágono. Na fronteira, a Venezuela tem um longo contencioso com a Guiana. Resolvê-lo pela força das armas desmoralizaria a “revolução” e com toda evidência faria que perdesse apoios no escol e entre os jovens de muitos países vizinhos (para não dizermos no Brasil). Se os aviões servem para garantir uma posição de força, os fuzis podem ser distribuídos a quem se habilitar usá-los contra Governos constituídos. Ou, o que é mais grave, para armar milícias organizadas para secundar os esforços de Governos que pretendam violentar as regras do jogo democrático e passar por cima das Forças Armadas regulares.

 

     Por sua extensão e posição geográfica, o Brasil é o único país que pode realizar uma política efetiva de oposição aos Estados Unidos no Hemisfério. Foi tendo em vista esse fato geopolítico da maior relevância que fiz menção à “teoria do cerco”. É uma hipótese, a que levanto agora, possivelmente tão absurda quanto a dos Estados Unidos atacarem a Venezuela, mas que cabe fazer pelo menos para desencargo de consciência: o jogo Chávez-Castro-Morales-Kirchner não terá exatamente o objetivo de, num futuro não muito distante, cercando o Brasil e inviabilizando negociações frutuosas com os Estados Unidos e a União Européia, fazer do Brasil o reduto da grande rocada estratégica no Hemisfério?

 

     Fica a pergunta.

 

     Sub censura.

 

  

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