AS ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS

Comunicação no Grupo de Análise de Conjuntura Internacional (GACINT) da USP  

  

 

     Não é fácil projetar o futuro, quando são tantos os futuribiles, como diria Bertrand de Jouvenel. Muitos analistas norte-americanos devem ter chegado à mesma conclusão, enquanto outros, talvez poucos, arriscaram-se a dizer, como George Friedman, que a eleição perdeu importância porque tanto Kerry como Bush deixaram claro que a guerra no Iraque irá continuar, cada um deles simplesmente dizendo que será mais efetivo na condução dela.  

 

     Para os que pensam como Friedman, “desde que a guerra não será abandonada, será a guerra, e não os candidatos, que irá determinar o curso dos acontecimentos”. Em sua análise de 12 de outubro, ele se permite um pouco de ironia: os democratas parecem gostar das cúpulas européias para lembrar Kennedy; os republicanos adoram chamar as coisas de “mal”. “Nem um apoio francês, nem nenhuma retórica fará a menor diferença”. E conclui: quer eles saibam, quer não, Bush e Kerry concordaram em uma coisa: a “única coisa que eles oferecem é sangue, trabalho penoso, suor e lágrimas”. Não porque queiram, mas porque não podem retirar-se do Iraque e talvez sejam levados, para transformar a derrota moral da Al Quaeda em uma derrota militar, a intervir desta ou daquela maneira em outros países árabes.  

 

     Friedman faz uma distinção: bin Laden teve uma derrota moral ao não conseguir que as massas árabes ocupassem as ruas em protesto contra a invasão do Iraque; os Estados Unidos tiveram uma derrota militar ao não conseguirem impedir, como não conseguem por muitas razões, que a Al Quaeda projete e realize novo ataque contra o território norte-americano. Outro dado importante que deve ser levado em conta são os atentados na Arábia Saudita e no Egito, como que a demonstrar que o alvo dos atentados, agora, passam a ser esses dois Governos que se mostraram dispostos, ainda que sob imensa pressão, a colaborar com os serviços de informação norte-americanos. Aceitemos que é a guerra que irá determinar o curso dos acontecimentos.

 

     Se é assim, é preciso ver qual a situação no Iraque. Sem dúvida, há um ou dois atentados por dia, com maior ou menor número de vítimas. A luta contra milícias parece ter mudado de patamar, seja pela intervenção de líderes religiosos xiitas, cujo pensamento é orientado pela política, vale dizer, pela busca de um diálogo que permita alcançar a supremacia nas próximas eleições, seja por cansaço de parte de El Sadr, seja porque os sunitas que se haviam erguido em algumas cidades já não podem conter o contra-ataque norte-americano ou do Governo provisório. Há alguns fatos, de que tive conhecimento semana passada, que creio ser interessante relatar: o aumento do comércio do Brasil com a Síria deve-se, em grande parte, a que a Síria abastece o Iraque de muitos produtos brasileiros. O comércio no Iraque continua apesar de tudo. O sistema financeiro está se articulando rapidamente, a ponto de haver bancos estrangeiros operando no país como o HSBC, o Chase e o Banco Nacional do Kuwait.  

 

     Esta introdução é para assinalar que a mudança que haverá na política externa norte-americana, vença Kerry ou Bush, será pequena no conteúdo, embora a forma possa apresentar alterações se os democratas conquistarem a Casa Branca e, convém não esquecer, puderem controlar a Comissão de Relações Exteriores do Senado. Possivelmente, Kerry pretenda restabelecer a aliança franco-americana, ação que não será muito difícil: ainda recentemente, por proposição dos Estados Unidos (de Bush) e da França, o Conselho de Segurança votou resolução determinando que Síria e Líbano democratizem seus processos políticos sob pena de sanções. Sem dúvida, a história levaria a França a não perder interesse pelo que acontece na Síria e no Líbano; estranho é que se alie aos Estados Unidos no que sem dúvida alguma é uma forma de pressão conjunta (mais sobre Damasco do que sobre Beirute) que não se pensaria ser possível dada a tensão que se criou depois da invasão do Iraque.  

 

     Essa ação conjunta no Conselho de Segurança da ONU permite levar o pensamento mais longe – o pensar, dizem hoje, é o livre pensar, quaisquer que sejam os futuiribiles. Não diria como Friedman que a guerra irá determinar o curso dos acontecimentos. Diria que a iniciativa cabe a Al Quaeda enquanto os serviços norte-americanos não conseguirem desarticular as muitas frações terroristas que se espalham por diferentes países. Por desarticular entenda-se, até, o ataque aberto ou encoberto a lideranças.  

 

     Convém não esquecer que o atentado de 11/9 alterou nas bases os padrões que governavam as operações dos serviços de inteligência e que a luta contra o terrorismo agora é conduzida em três níveis: o do sistema internacional, com o combate à lavagem de dinheiro e ao fim do sigilo bancário em muitos antigos paraísos; o de Estado a Estado, como na relação EUA-Iraque que pode estender-se a outros Estados do Oriente Médio; e o individual, com a autorização para que se eliminem terroristas apenas detectados. A pergunta que se coloca é se Kerry, eleito, irá modificar essas novas regras.  

 

     Na análise da situação no Iraque, mesmo tendo em vista o que prognosticou Friedman, convém também buscar compreender os motivos que levam os adversários da ocupação a mudar o padrão dos seqüestros, embora persista o dos atentados. O atentado de Madrid fez que o Governo socialista mudasse a política exterior e se retirasse do Iraque. Os seqüestros de nepaleses fizeram que o contingente mínimo do Nepal se retirasse. A captura de alguns árabes que trabalhavam para empresas norte-americanas não as levou a cessarem seus serviços no país. O seqüestro do inglês é o que chama atenção: a exigência era “negociável” – como sucedeu no Brasil num dos últimos seqüestros de diplomatas, em que se trocaram vários dos presos que os seqüestradores queriam libertar. A Inglaterra resistiu e o infeliz foi degolado. O padrão mudou: não foi exigida a retirada da Inglaterra, mas apenas a libertação de mulheres que Londres disse não ter em custódia. E as duas mulheres italianas foram libertadas – mediante resgate, que tenha sido. O importante é que se mudou o patamar de exigências e a Política, isto é, a possibilidade de parlamentação, ressurge das cinzas.  

 

     Somemos estes fatos e veremos que Kerry não terá como alterar a política a menos que queira fazer algo que soaria, para Blair, como acrescentar o insulto à injúria. E o mesmo com o Governo italiano, que resiste e, mais do que isso, toma a iniciativa de ir negociar com Gadafi um modus vivendi para a imigração líbia para a Europa. A viagem de Berlusconi pode parecer fora de contexto, mas não é: indica, a meu ver, que há quem já compreenda que a guerra contra o terrorismo não deve ser travada pensando-se apenas em termos de guerra em si, mas colocando-a num contexto mais amplo, que é o da globalização e da interconexão dos diferentes países do mundo com esse processo. Para Thomas Barnett, que tem longa experiência em planejamento estratégico na Marinha dos Estados Unidos e no próprio Departamento de Defesa, o futuro dependerá de se compreender que o terrorismo surge nos países não conectados, não globalizados, digamos, e que a guerra é expandir a globalização com todo seu comboio de civilização que traz consigo. A viagem de Berlusconi encaixar-se-ia nesse processo de conexão.  

 

     Para Barnett, a globalização impôs aos Estados Unidos – afora o desenvolvimento científico e tecnológico no campo militar, fazendo deles a maior potência militar do mundo, hoje – uma tarefa: a de dar segurança ao mundo. Bush parece ter compreendido ser esta a tarefa, ao restabelecer o princípio do rebus sic stantibus na condução de sua política exterior. Até onde, considerando a importância que o sistema militar tem nos Estados Unidos, e o fato, relevante, de os diferentes serviços estarem estudando como se adaptar ao cenário mundial em que não há competidor à altura, como na época do fastígio da URSS, até onde, diria, Kerry será capaz de voltar aos velhos princípios de Westfalia? – que, aliás, convêm não esquecer, estão vigorando quando se trata de discutir problemas de segurança na OTAN.

 

     Esta, a meu ver, é a questão que as próximas eleições nos Estados Unidos colocam a todos nós.  

 

     Muito obrigado.

 

  

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