AUTO DA DESESPERANÇA – ATO XI

 

 

 

 

ATO IX

 

    

     Cena I

{A ação continua a desenvolver-se na sala do Tribunal, que permanece disposta da mesma forma como estava no início do ato anterior. Todos entram e tomam seus lugares}

 

     PEDRO — Tem a palavra o nobre Cardeal Richelieu.

 

     RICHELIEU — Lembraria ao Tribunal que estamos diante de um homem que tem mil faces e que fez de seu Governo a imagem de si próprio. Mais ainda: teve sempre o cuidado de transferir para seus subordinados todas as culpas pelos atos desabonadores que a oposição denunciava. Afastou, assim, quantos poderiam fazer que sua imagem junto ao povo fosse denegrida.

 

     VICHISKY — Peço vênia ao excelentíssimo e reverendíssimo Cardeal para um aparte.

 

     RICHELIEU — Que seja breve.

 

     VICHINSKY — Lembraria ao Santo que muito daquilo que acontece no Brasil, atingindo as instituições, é fruto da Oposição, que parece temer que as acusações contra o Presidente Lula da Silva conduzam a uma crise institucional…

 

     BODIN — O nobre Cardeal me perdoará, mas é preciso dizer que a Oposição deveria estar aqui, no banco dos réus, pois deixou de cumprir sua função de zelar pelas instituições…

 

     PEDRO — Que todos se calem e deixem o Cardeal concluir suas observações. Depois, Acusação e Defesa poderão falar.

 

     RICHELIEU — Os Defensores do Governo têm razão em sua crítica às oposições. É por isto que posso dizer, baseado em minha experiência, que as instituições correm risco. Não há quem as defenda. Pediria que para este aspecto os nobres Defensores atentassem. Dirijo-me a eles, porque estou certo de que a Acusação saberá, melhor do que eu, apontar os riscos a que estão expostas as instituições. Mas devo dizer, na minha condição de observador e conselheiro do Senhor, que há muitos aspectos louváveis no Governo Lula da Silva. Ainda que se possa dizer que alguns programas sociais são apenas um ‘ersatz’, como diria Herr Schmitt, eles permitiram que algumas centenas de milhares de pessoas saíssem de sua condição de sub-miséria e passassem à de miséria, tendo a esperança de chegar a uma vida digna da condição humana.

 

     PEDRO — Maquiavel com a palavra.

 

     MAQUIAVEL — Atendendo às considerações do Santo que preside este julgamento, pretendo encerrar agora minhas considerações. Muito tempo se passou desde que, chamados pelo Senhor, pretendemos mostrar ao Mundo da Luz o quanto o Mundo das Trevas está fazendo para destruir o País que o Governo Lula da Silva diz dirigir para o bem. Serei breve, o quanto o tema permitir. Há tempos escrevi que o bom Governo é aquele que se apoia nas boas Leis e nas boas Armas. Deixo a Inácio e Saint Just falar sobre as leis. Limito-me, agora, a cuidar das Armas. Que se viu durante todo o Governo Lula da Silva? O esforço paciente, mas constante, de desmoralizar as Armas e afastá-las de todos os centros de decisão nos assuntos que interessam à República. Trouxe para a Presidência o rancor de quem foi preso, melhor seria dizer, retido durante alguns dias, e de quem pretende transformá-las num corpo amorfo dentro do Estado…

 

     BODIN — O nobre pensador está a fazer a defesa daqueles que romperam as instituições!

 

     PEDRO — Atenção! Não é por ter pertencido a um grupo chamado Políticos que o nobre Defensor pode interromper a Acusação. Voltando a perturbar os trabalhos, cassarei seu direito a falar. Continuai, Maquiavel.

 

     MAQUIAVEL — Outros responderão ao nobre Defensor. O Governo Lula da Silva quis, repito, transformar as Armas em um corpo amorfo dentro do Estado. Tanto assim que, num jantar de confraternização das Armas com o Presidente da República, referiu-se a elas como sendo compostas por um bando de Generais…

 

     VICHINSKY — E nenhum deles protestou no ato! Colocaram a disciplina acima da honra! O Presidente não pode ser responsabilizado pela conduta não militar de seus Soldados!

 

     PEDRO — Os nobres Defensores se excedem! Silêncio! Deixai a Acusação falar! Cassarei vossos direitos se continuardes com esta má conduta!

 

     MAQUIAVEL — O processo de afastamento das Armas do centro das graves decisões políticas continuou, nisto seguindo o caminho aberto pelo Presidente Fernando Henrique, ao manter vivo o Ministério da Defesa, produto das influências norte-americanas na política militar brasileira. Tudo fez para impedir que as Armas fossem ouvidas quando o Estado estava ameaçado ou quando movimentos sociais ofendiam a Constituição e a Lei, sem que autoridade alguma lhes desse um basta definitivo. Cortou umas verbas, outras contingenciou — palavra estranha que não se usava em meu tempo — , impediu o reequipamento delas e sua modernização…

 

     TALLEYRAND — Seguindo as políticas em vigor desde o Governo Castelo Branco… Foi a Junta Militar, em 1969, quem deu aos Ministros poderes para reformar quantos queriam fazer uma revolução não se sabe para que…

 

     PEDRO — A Defesa merece advertência. Conste dos autos que ela está abusando de seus direitos!

 

     MAQUIAVEL — Não aceitarei a provocação de quem serviu a tantos senhores, inclusive aconselhando aqueles que derrotaram os exércitos de Napoleão, que foi seu senhor, e introduziu a idéia da legitimidade nas relações internacionais. Mas diria, para seu conforto, que tem razão. O que não me impede de continuar, dizendo que a política do Governo Lula da Silva só tem um objetivo final, que é fazer das Armas o fiel servidor de quem está no poder, seja quem for. As Armas, desde o 15 de novembro de 1889, sempre serviram à República, não ao Presidente dela. Sempre foram instrumento do Estado e não de Governos…

 

     A DEFESA EM UNÍSSONO — Golpista!!!

 

     PEDRO — Mais uma intervenção e suspenderei a sessão!

 

     MAQUIAVEL — Foram aqueles que monsieur Talleyrand chama de golpistas que permitiram a República chegar onde está: uma grande economia, instituições estáveis (o quanto o Governo Lula da Silva permitir), reconhecimento internacional…

 

{SONORAS GARGALHAS DA DEFESA}

 

     PEDRO — Registre-se mais uma advertência à Defesa! A sessão está suspensa.

 

{Lusbel mais gargalha. O Arcanjo avança rápido para Pedro e confabula com ele. Cai o pano}

 

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     Cena II

{Mudou a disposição da sala do Tribunal. Há um grande relógio voltado para a platéia. Lusbel, agora, está em trono colocado abaixo do de Pedro. O Arcanjo está na tribuna da cena anterior, cercado por anjos que têm, visíveis, alabardas. Todos entram}

 

     TALLEYRAND — Questão de ordem. As palavras do senhor Maquiavel ofendem a consciência política de Monsieur Bodin e a minha, e ofendem a consciência jurídica de Herr Schmitt. Para que nossa repulsa a palavras tão descabidas não levem a nova interrupção da sessão e do julgamento, comunicamos que, enquanto Maquiavel estiver com a palavra, ficaremos de costas para manifestar, em silêncio, nossa desaprovação e nosso protesto.

 

     PEDRO — A Defesa abre um precedente. Para não tomar uma decisão apressada, consultarei o Santo Ivo, um franciscano, protetor dos advogados. A sessão está suspensa. Conservai-vos em vossos lugares. {retira-se e volta nisso, o relógio do Tribunal avançou 30 minutos} — O Santo Ivo estranhou vossa posição, mas ponderou que vos impedir de manifestar vossa desaprovação às idéias expendidas por Maquiavel seria cercear a Defesa. Podeis conservar-vos de costas, desde que tal atitude não signifique desrespeito ao Tribunal.

 

{A Defesa senta-se de costas para a Acusação e Maquiavel prossegue}

 

     MAQUIAVEL — Concluirei em breves palavras. O último ato de hostilidade manifesta às Armas foi a pretendida defesa dos direitos humanos, prejulgando quantos militares participaram das lutas contra a subversão que ameaçava o Estado. Direi apenas que esta pretensão atenta contra o Direito, pois pretende retroagir a lei penal afrontando todos os princípios gerais do Direito. É, pode-se dizer, um insulto às Armas e um atentado contra as instituições. Passo a palavra a Inácio.

 

{A Defesa volta à correta posição}

 

     INÁCIO — Espero ser breve, elevando meus pensamentos ao Senhor e Lhe pedindo que contenha minha ira, que considero santa, pois pretendo acusar para defender os pobres e humildes e assim, creio, não darei à Defesa falsos pretextos para interromper o julgamento. O Governo Lula da Silva é culpado por omissão, pecado maior quando quem o comete tem a responsabilidade, da qual decorre o dever, de zelar pelos humildes, abrindo-lhes as portas para que possam dizer, um dia, “sou cidadão”, isto é, pertenço a uma comunidade com todos os direitos e deveres administrados pelo Estado, que a todos os aplica. Omissão por não ter corrigido tudo aquilo que dos Governos anteriores — e não apenas o do Segundo Fernando — recebeu no campo da educação. São, dentro em breve, oito anos, em que pouco se terá feito para permitir que os brasileiros pobres adentrassem o universo das letras e das artes, para não dizer da ciência e da tecnologia. Fora deste universo, são cidadãos de segunda classe, possivelmente massa eleitoral de manobra, mas nunca homens livres no sentido pleno definido pela Santa Madre a que modestamente sirvo. Mais ainda, estão excluídos dos bons empregos, aqueles que requerem conhecimentos fundamentais de Português e Matemática. Se, no passado, no ardor das lutas contra os hereges, defendi a educação dos príncipes para assegurar o triunfo da verdadeira fé, hoje tudo mudou. Minha Companhia, militar na organização e na disciplina, adaptou-se às novas situações, seguindo orientação e ordens de todos seus Comandantes. É por isto que sustento que o Governo Lula da Silva pecou por omissão e por isso deve ser condenado. Sei e estamos todos fartos de saber que o Brasil é uma Federação e que muito da responsabilidade pela educação dos humildes cabe aos estados que integram a Federação. Sei e os nobres Defensores não precisarão me lembrar que a responsabilidade legal pela educação básica cabe aos Governos estaduais. Geral de uma companhia religiosa de feição militar, não posso aceitar este argumento, que é antes de tudo uma desculpa. Salus populi suprema lex esto — e com isto, os nobres Defensores concordarão, ainda que a contragosto. Ao assumir o Governo, o cidadão nascido Luis Inácio da Silva — depois Luis Inácio Lula da Silva, pois alterou seu registro civil para efeitos eleitorais — sabia da situação porque, até certo ponto, fora vítima dela. Esqueceu-se de que a saúde do povo é a lei suprema a que os governantes devem obedecer. Omitiu-se de seu dever, que seria colocar o Estado em ação para que todos pudessem saber ler, escrever, contar e, mais importante ainda, conhecer a História de seu País. Sei, e a nobre Defesa não precisará lembrar, que criou créditos educativos — mas para os que vão às Faculdades ou Universidades. O ensino para os humildes, deixou-o a cargo de Governadores que pouca atenção dedicam à crise e contribuem para que o crime contra a Nação se cometa todos os dias. Buscando esconder sua responsabilidade, criou escolas técnicas, como se apenas a preparação para emprego bastasse para fazer de cada brasileiro um cidadão. Tudo indica que os assessores e os Ministros, em seu Governo, não lêem jornais, relatando a situação dos professores e o descaso com que em toda parte se tratam os humildes que não sabem que fazer para aprender como ser cidadãos de pleno direito e poder sê-lo. Dirão, os que deveriam cuidar do problema, que não será possível ir contra as leis e invadir a competência dos estados federados. Desculpas de quem tem a consciência pesada e se recusa a fazer sua a verdade contida nesta frase: salus populi suprema lex esto. Este é um crime contra a Nação e por ele acuso o Governo Lula da Silva. É culpado por omissão por haver descurado das ciências e da tecnologia. Por isso é responsável pela falta, entre outros, de engenheiros num país que pretende ser alguém entre os países que são grandes e modernos porque cuidaram da ciência e da tecnologia. Não é minha seara, mas direi também que o Governo Lula da Silva é culpado por omissão por haver descurado da infra-estrutura viária. Por haver pretendido fazer de alguns progressos em outras áreas o motivo de exaltação da parte de quantos esperam, com o elogio fácil, conquistar as graças do príncipe (perdoe-me Maquiavel) e alcançar prestígio que de outra forma não teriam.

{Inácio respira fundo}

— Disse o suficiente. Se a Santa Madre estabeleceu que é possível pecar por pensamentos, palavras e obras, humildemente sugeriria ao Santo que nos preside que determinasse a seus sucessores na Sé de Roma que incluíssem entre os pecados, podendo até entrar no rol dos pecados contra o Espírito Santo, o da omissão, especialmente quando o governante se esquece de que a saúde do povo é a lei suprema a que ele deve obediência. Dixit.

 

     PEDRO — Com a palavra Saint Just para suas considerações finais

 

     SAINT JUST — A crise é das instituições. Ela vem de longe, muito antes do Sr. Luís Inácio Lula da Silva chegar ao poder. Tenho certeza de que o Príncipe das Trevas foi o responsável pela má conduta de senadores, deputados e vereadores, deslustrando as instituições que deveriam defender. E também inspirou a Imprensa que não cansa de apontar, diria com deleite, todos os erros e deslizes da chamada classe política, contribuindo para que o povo não acredite mais nas instituições, mas apenas num ditador — pois o Sr. Luís Inácio Lula da Silva é apenas um ditador, servindo-se de Medidas Provisórias para fazer o que bem entende. Insisto no que Inácio, o Santo, tem razão: o acusado omitiu-se, quando seu dever era tudo fazer para que a crise não se agravasse.

— Mas o Governo Lula da Silva não peca apenas por omissão. Peca por ações e palavras, quando não por pensamentos. Conscientemente zomba da lei e, com suas atitudes, dá nova versão àquela frase anti-republicana que Getúlio Vargas proferiu em 1945: ‘Voto não enche a barriga de ninguém’. Ao contrário de Vargas, ele precisa dos votos para eleger sua candidata. Mas, como Vargas, despreza a lei e o diz sem rebuços, violando-a quando lhe apetece, rindo-se das multas que a Justiça Eleitoral lhe impõe e transferindo para seu partido a tarefa de pagá-las.

— A crise não está apenas em que o Presidente da República viola a lei e zomba dos Tribunais; reside também em que a Oposição não se atreve a mover contra ele processos por crime de responsabilidade. Não que o Presidente impeça o cumprimento da lei. Simplesmente a ignora como um monarca absoluto qualquer, um daqueles que Robespierre e eu auxiliamos a destronar e com ele todos os privilegiados que oprimiam o povo francês. É uma crise que está, como dizia Maquiavel, no desprezo que devota às Armas, levando à sua lenta desestruturação e a uma grande crise de identidade. Ao desprezar as Armas, defensoras do Estado, abre caminho para que todas as demais instituições do Estado conheçam o caminho do desespero, pressentindo seu fim útil e o fim do respeito que lhes é devido para não muito distante.

— Pedro, quem salvou minha Revolução? Foram as Armas que, em Valmy, derrotaram os inimigos da Igualdade, da Liberdade e da Fraternidade aos gritos de ‘Vive la Nation’! Foram as Armas que, sob o comando deste renegado que se chamou Napoleão, ergueram alto o nome da França, a França da Revolução, não a França do Imperador usurpador. A crise vai mais longe e mais profunda. Pelo passado, o Governo Lula da Silva não é responsável. Mas o é na medida em que, valendo-se também da inércia dos Tribunais, não permite que se apure até o fim o famoso escândalo do ‘mensalão’. É também, neste caso, responsável por omissão. Nem ele nem seu partido são responsáveis pelas Medidas Provisórias, instrumento ditatorial que permite ao Governo usurpar o Soberano, como antevia Rousseau. Nada fez, porém, para devolver ao povo, por seus representantes, o poder real de legislar. Aproveitou-se da falência das instituições para decretar, legalmente, por medidas provisórias, o que lhe interessava para realizar seu projeto de poder ainda que à custa da República.

— A raiz mais nova da crise é o medo das oposições de enfrentar este homem que pretende ser rei. Ele sabe que elas o temem. Melhor, sabe que elas têm medo de que, enfrentando-o e chamando-o à responsabilidade institucional, a República esteja em perigo. Robespierre diria que, quando esta situação se verifica, a República já morreu. Se Luis XVI tivesse sobrevivido, cercado pelos inimigos da Revolução, ela teria perecido. Por isto afirmou que, em nome da Revolução, Luís deveria ser morto! Hoje, digo que em nome da salvação da República, o Governo Lula da Silva deve ser condenado. Quando os responsáveis pelo correto funcionamento das instituições temem que a sorte de um homem as comprometa, elas não mais existem. Este é um crime, o de os responsáveis pela defesa das instituições deixarem que elas pereçam nas mãos de quem não as respeita.

— O Sr. Luis Inácio Lula da Silva sequer respeita o cargo que exerce. Em seu comportamento, dentro e fora do país, escarnece da dignidade que o cargo reclama. E nada se faz para impedir que a idéia da República, encarnada nos seus representantes, seja desmoralizada perante a população humilde. Os poderosos, estes escarnecem, eles também, de tudo isto, pois sabem que deles é parte do poder. Que sem eles, Lula da Silva nada seria. Ele é um dos que integram o sistema político e econômico que destrói a República. Por isso, voltando a Robespierre, ele deve ser condenado. Falei e disse.

 

{Silêncio no Tribunal. Ouve-se o quarto movimento da Sinfonia Fantástica de Berlioz: o artista caminha para o cadafalso}

 

     PEDRO — A sessão está suspensa. Ouviremos a conclusão dos argumentos da Acusação e em seguida os da Defesa amanhã pela manhã. Lembro que a sessão será longa, pelo que peço-vos desculpas.

 

{Lúcifer cumprimenta Saint Just. Inácio afasta Lusbel com um safanão, quando o Príncipe das Trevas pretende cumprimentá-lo. Pedro e o Arcanjo saem, cabisbaixos. O pano cai lentamente}

 

 

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