BRASIL: HEGEMONIA E IMPÉRIO – 11

 

 

 

      Um dos efeitos da criação do Mercosul foi, com certeza, o lento esquecimento, nos países da América do Sul, do “imperialismo brasileiro”. Dissemos lento pensando no Paraguai, cujas elites intelectuais ─ às vezes, a elas se juntando expoentes das classes economicamente dirigentes ─ têm viva a memória da Guerra da Tríplice Aliança e do papel preponderante que as Forças Armadas brasileiras desempenharam em todo o conflito. Em artigo anterior, buscamos explicar essa nova maneira não “imperialista” de ver o Brasil como decorrência do fato de as empresas brasileiras associarem-se às locais para execução de projetos governamentais, e do BNDES ser a grande fonte de financiamento de obras de infraestrutura ou de exploração de minérios e petróleo. O que não significa que a idéia de que o Brasil é “imperialista” tenha deixado de preocupar, nas análises de situação, boa parte dos que se dedicam, nos países sul-americanos, a estudar Relações Internacionais. O que permite a pergunta, ainda que ela seja acadêmica ─ é o Brasil um Estado imperialista?

 

      O apodo vem, sem dúvida, do fato de o Reino Unido ter-se empenhado na Guerra da Cisplatina, que Dom Pedro I continuou até 1828. A Cisplatina significava, para as Províncias Unidas do Rio da Prata, mais que o território depois uruguaio. O controle deste significava o domínio sobre as duas margens do estuário do Rio da Prata e o acesso ao interior, rio acima, que Buenos Aires não queria perder ─ da mesma maneira que a Coroa, preocupada com a livre navegação até Mato Grosso. O exame das intervenções brasileiras na região permite conclusões curiosas sobre a política externa do Rio de Janeiro nesse período, ora aliando-se a Buenos Aires, ora lutando contra Rosas. A Tríplice Aliança e o fim da guerra contra o Paraguai não apagou em praticamente todos os círculos dirigentes de Buenos Aires a impressão de que o Brasil era diferente ─ ameaça potencial pelo fato de ser um Império e, por isso mesmo, herdeiro das ideias européias, adversário das repúblicas americanas.

 

      Mais do que a Cisplatina e a Tríplice Aliança, o fato de o Brasil ser um Estado Imperial foi o motivo da suspicácia americana contra o Brasil. A proclamação da República não dissipou totalmente a névoa que envolvia as relações internacionais do novo Estado federado; depois de 1889, se não se podia mais atribuir ao Estado Imperial os motivos da apreensão ─ como de fato era o sentimento ─, a extensão do território esteve na raiz dos receios. Era comum dizer-se, em países vizinhos, que o Brasil era um gigante adormecido, cujos passos, uma vez desperto, ninguém poderia prever. Não que fosse um sentimento irracional; afinal, o empenho brasileiro, sobretudo com o Barão do Rio Branco, em consolidar fronteiras ─ ainda que mediante arbitragem ─ seria sinal evidente de que as ambições territoriais do País não tinham morrido com o advento da República. Às vezes, levanta-se a questão do Acre como prova disso, esquecendo-se todos de que a incorporação daquele território resultou de um ajuste de fronteiras e no pagamento de vultosa indenização à Bolívia. Podemos dizer que o Barão do Rio Branco quis evitar uma intervenção estrangeira em território fronteiriço, a dos Estados Unidos, amparados na Doutrina Monroe, na medida em que a Bolívia havia cedido o território à exploração de um sindicato anglo-americano.  

 

      A rigor, de império, a Monarquia teve apenas o nome, se entendermos por império uma formação estatal composta de diferentes unidades territoriais conquistadas pela força militar, as quais têm um centro política e economicamente dominante. O centro é, também ele, uma formação estatal que se expande para territórios que não são os seus com objetivo não só de aumentar a riqueza disponível para o Governo e, igualmente, para os setores socialmente dominantes e dirigentes, como de elevar sua posição de poder na sociedade internacional e, a exemplo de França e Inglaterra, ter reservas humanas disponíveis para suas guerras (guerras continentais na Europa no século XX).

 

      No processo de expansão do Capital, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, houve quem designasse como “imperialismo” a ação dos Estados interessados em exportar Capital e excedentes dele, além de buscar, nos territórios dominados, matérias primas e fazer deles mercado forçado para colocação dos bens produzidos no que se chamava metrópole. Com o domínio desses territórios, os países europeus buscavam aumentar seu poder na sociedade internacional pela influência direta sobre Governos de Estados independentes ─ influência obtida pela cooptação ou pela associação com setores nacionais economicamente dominantes. Da perspectiva desse tipo de análise, a Inglaterra era um “império” porque tinha possessões na Índia e na África, e porque seu poderio econômico e financeiro dava-lhe posição ímpar no, digamos, concerto das nações.

 

      Ora, a guerra da Cisplatina não foi ação determinada pelo desejo de expansão territorial, mas sim pela necessidade de manter abertas as comunicações com os territórios a Oeste. Mais do que intervir para determinar uma política, a Coroa agiu no Uruguai levada pela necessidade, que é a de todos os Estados, de garantir o livre acesso a seus territórios e de proteger súditos seus no exterior ─ no caso, fazendeiros gaúchos que, indefinidas as fronteiras, encontravam nas campinas uruguaias terra fértil para criar seu gado, intrometendo-se na política local em defesa de seus interesses.  

 

      A República, da mesma maneira que o Segundo Reinado, não teve condições de expandir a influência econômica brasileira nos países vizinhos. Será apenas depois, na segunda metade do século XX, que algumas empresas brasileiras ─ especialmente empreiteiras que começavam a ganhar corpo na vida econômica brasileira graças ao impulso dado pelo Governo às obras civis ─ iniciaram processo de expansão de seus serviços para esses países vizinhos. Então foi possível vislumbrar no exterior próximo condições favoráveis à penetração do capital brasileiro. Ainda assim, em muitas ocasiões, se não sempre, os brasileiros tiveram que associar-se a empresas locais. O caso paraguaio talvez seja o único ─ outra fosse a intenção dos Governos brasileiros ─ que poderia permitir que se visse, na chegada de agricultores em busca de terras que compensassem as dificuldades encontradas no Sul pela divisão de propriedades e problemas geomorfológicos, a tentativa de fazer das áreas colonizadas um enclave humano que permitisse, mais tarde, o que seria um Anchluss sul-americano. Itaipu não poderá ser considerado exemplo de expansão do capital e do “império” brasileiro na medida em que é obra construída pelos dois Governos, ainda que o brasileiro tenha arcado com todos os custos, lançando a débito do Paraguai metade deles. Observe-se que a dependência da economia brasileira da energia ali produzida obriga o Governo de Brasília a manter, sempre, boas relações com o de Assunção se desejar continuar se beneficiando da eletricidade produzida na usina.

 

      Quando buscamos entender as razões que teriam determinado o surgimento da idéia do “imperialismo” brasileiro, devemos ter presente como os Governos do Rio de Janeiro, primeiro, de Brasília, depois, viam o espaço brasileiro e a influência dele nas relações com os vizinhos. Dessa perspectiva, não nos esqueçamos de que o estado do Mato Grosso só mereceu atenção do Governo Federal no Estado Novo, quando Getúlio Vargas pretendeu, com a Marcha para o Oeste, incorporar a vasta região ao circuito civilizatório nacional. Não seria demais lembrar que, ao escrever sua “Geopolítica do Brasil” em 1958, quando na Escola Superior de Guerra, o Coronel Golbery do Couto e Silva cuidou de traçar as diretrizes geopolíticas para a ocupação do território brasileiro que lhe aparecia como vazio, a imensidão do território desocupado representando um perigo para a segurança nacional. Da mesma maneira que é importante observar que a Ordem de Batalha do Exército e a doutrina militar brasileira, até a recente rocada para a Amazônia, cuidava de defender as fronteiras do Sul de um ataque da Argentina, reconhecidamente mais bem equipada militarmente que o Brasil.

 

      Quando, por outro lado, vemos o mapa das comunicações rodo e ferroviárias no Centro-Sul, temos a certeza de que a República nunca pretendeu qualquer forma de expansão territorial. Há, sem dúvida ─ e merece estudo à parte ─ um dado que não pode ser desprezado sem maior exame, que é o artigo 4º da Constituição de 1937: “Artigo 4º – O território federal compreende os territórios dos estados e os diretamente administrados pela União, podendo acrescer com novos territórios que a ele venham a incorporar-se por aquisição conforme as regras do direito internacional”. Observe-se, todavia, que a política externa do Estado Novo não deu mostras, desde o 10 de novembro de 1937, de qualquer pretensão expansionista… Pelo contrário, o que se tem é o desejo de não criar atritos com a Argentina, expresso claramente no momento em que o Governo brasileiro desiste da compra de destróieres nos Estados Unidos para não causar um conflito com seu vizinho.

 

      Há de considerar-se, contudo ─ descartado o episódio da retirada do Brasil da Sociedade das Nações ─, que há ações na política externa dos Governos Kubitschek, Lula e Dilma que permitiriam aos espíritos mais sensíveis colocar em dúvida a ausência de intenções “imperiais” por parte do Brasil. Não de ocupação, diga-se desde já, mas de influência e predominância política na região.

 

      A Operação Pan-americana só pode ser vista dessa perspectiva. Que outra razão, senão a de afirmar-se perante os Estado vizinhos como aquele que pode falar em seu nome e tem as soluções para os problemas de toda a América ao Sul do rio Grande? Permito-me lembrar conversa, sem registro publicado, que tive com o Chanceler Macedo Soares em Roboré, 1958. O Chanceler ─ que seria afastado pouco depois, não tendo participado da elaboração da carta que Kubitschek dirigiu ao Presidente Eisenhower ─ deixou claro que seu próximo passo, depois de vencer as resistências de La Paz a que empresas privadas brasileiras explorassem o petróleo boliviano, seria dedicar-se a percorrer os países vizinhos para obter deles procuração para falar em nome da “América Latina” na Assembléia Geral das Nações Unidas.  A Operação Pan-americana (OPA) foi mais do que a procuração para o Brasil falar em nome dos demais Governos. Foi declaração altissonante de que o Brasil, interpretando um sentimento geral, era capaz de propor aos Estados Unidos a solução para os problemas de desenvolvimento e segurança interna de todos. Terá faltado, talvez, a Kubitschek e à Chancelaria, ânimo suficiente para ir avante na intenção, ao invés de dá-los como triunfo e contentar-se com os resultados da proposta, o mais relevante deles sendo a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Seria importante, para de fato colocar a OPA em seus devidos termos, verificar, documentalmente, a posição dos demais Governos à proposta brasileira e se o gesto de Kubitschek não demonstrou, para os vizinhos, que o “imperialismo” brasileiro, enquanto vontade de afirmação e preponderância, era uma realidade.

 

      As políticas sul-americanas de Lula e Dilma partem do princípio ─ mais ideológico do que fundado nos dados de poder ─ de que o Brasil deve romper sua relação prioritária com os países desenvolvidos situados ao Norte (Europa e Estados Unidos). Para tanto, Lula procurou fazer e Dilma deseja realizar uma política externa baseada nas relações Sul-Sul ─ mesmo que essas relações sejam apenas comerciais. Essa política externa voltou-se para a África e a América do Sul, mas não pode esquecer os dados da balança comercial brasileira, os quais indicam que a fixação no comércio Sul-Sul dificilmente poderá compensar aquele que se realiza com Estados Unidos e União Européia.  

 

      O que significa a África para o Brasil podemos ver nas últimas decisões do Governo Dilma, perdoando cerca de 700 milhões de dólares de dívidas de alguns países africanos. Dir-se-ia que, mais que um gesto de benemerência de quem é mais rico para quem se considera mais pobre, trata-se da maneira tupiniquim de permitir que empresas brasileiras possam voltar a ter financiamento do BNDES para exportar àqueles países. Já as relações com a América do Sul têm a norteá-las uma estranha idéia do que sejam relações internacionais ostensivamente não imperiais: o Brasil é o país mais rico ou menos pobre da região, razão pela qual deverá fazer todo o possível, mediante empréstimos, financiamentos e exportação de capitais, para favorecer o desenvolvimento dos vizinhos. O BNDES desempenha, neste capítulo, papel importante, garantindo a penetração de empresas brasileiras no entorno geopolítico.

 

      Essa política explicaria as razões pelas quais o Brasil consente, com reações pontuais, que a Argentina desrespeite o Tratado de Assunção e demais acordos do Mercosul no que tange a relações comerciais. É importante para a política externa brasileira não desagradar a Argentina ─ nem buscar acordos bilaterais com a União Européia apesar da pressão de setores industriais brasileiros para que tal ajuste se faça. Essa política se explicaria por que o comércio com os países do Mercosul é importante para efeito do equilíbrio da balança comercial e para a acumulação do Capital.

 

      Apesar disso tudo, não se pode descrever a política externa brasileira como “imperialista” por duas razões: uma, que as empresas brasileiras que se estabelecem nos países vizinhos estão sujeitas à sua legislação nacional; outra, que a influência “imperial” brasileira não se faz sentir, na medida em que os Governos vizinhos são ciosos de sua soberania. Observe-se, do ponto de vista da “influência”, que, quando o Brasil, movido por este ou aquele preconceito ou visão política, deseja punir os Governos que se afastam do que se convencionou chamar de política bolivariana, tem de buscar o apoio ─ alguns dizem, seguir ─ a política da Argentina no Mercosul. Temos, assim, uma política externa que favorece a expansão do Capital na América do Sul, mas não consegue influenciar a política interna e externa dos países do entorno geopolítico. Pelo contrário, fazendo do Mercosul sua meta principal e de suas normas (bem ou mal interpretadas, pouco importa), uma Bíblia, a política externa brasileira na América do Sul pode ser tida como subordinada, não como autônoma.

 

      Com o que o Brasil nem é hegemônico, como vimos nos artigos anteriores, nem é um Império.

 

      Império, aliás, não poderia, jamais, ser. Pela simples e boa razão de que não tem Poder Militar para afirmar sua política, qualquer que seja ela. O máximo que tem de Poder Militar, emprega nas missões de paz da ONU ─ com o que faz das Forças Armadas, mal equipadas, contingente de um Estado sipaio da globalização.

 

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Nota ─ “Sipaio – soldado natural da Índia, ao serviço dos ingleses”. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa

 

 

 

 

 

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