– INTERMEZZO – 2

 

 

 

 

     Qualquer que venha a ser o resultado dos incidentes que ora acompanhamos em Salvador, BA, ele comprovará a progressiva falência do Estado brasileiro.

 

     Fôssemos partidários da ordem a qualquer preço, ao saber que algumas mulheres dos “grevistas” e seus filhos deixaram o edifício da Assembléia Legislativa em Salvador, e que os que permanecem amotinados estão sendo atendidos em suas necessidades básicas (higiene e alimentação), diríamos que tudo está bem quando bem prossegue e bem termina. E as razões que levaram à decretação da prisão de um dos líderes do movimento da PM baiana − “formação de quadrilha e roubo de viatura” −, mais indicam que, de fato, tudo deve estar indo muito bem. Pois a greve feita numa instituição militar, um órgão do Estado encarregado da segurança e sujeito a regras rígidas de disciplina e hierarquia, pôde muito bem ser caracterizado como crime comum, já banal, quase sem importância, pois já desgastado pelo noticiário cotidiano, não um crime militar que nada tem a ver com “formação de quadrilha”. Enfim, tudo está bem, quando termina bem – e tudo terminará bem para o Governo federal, que poderá mostrar ao mundo que o Carnaval baiano será como sempre vem sendo. Especialmente poderá convencer disso os Estados Unidos, que suspenderão a recomendação para que turistas não façam de Salvador um destino em seus alegres feriados.

 

     Se confirmar-se que os demais líderes e todos os amotinados poderão ser processados por formação de quadrilha − sem perguntar-se por que se teria formado tal bando armado − a Polícia Militar da Bahia terá perdido, e seus Comandantes não terão mais certeza certa de que suas ordens, quaisquer que sejam, serão cumpridas. Terá perdido também a Justiça, como já tinha perdido no Ceará e, a continuar as coisas como estão, perderá de novo na próxima unidade da Federação a experimentar o peso de uma reivindicação apoiada em armas, ainda que leves, e o medo da população. Perderá a população. O Estado terá perdido, apesar de que Ministro próximo de Dilma possa jurar de pés juntos que tudo serviu para mostrar que no Brasil existe Estado. Ganhará o Governo federal.

 

     Alguns perguntarão as razões que me levam a assim pensar. Uma só: no Morro do Alemão, no Ceará e agora na Bahia, o Governo pôde demonstrar que sua tese está correta − a de que as Forças Armadas estão aí para manter a lei e a ordem, porque esse é o único cuidado de interesse do Estado a que elas se prestam. Dos demais supostos interesses de Estado, deverá cuidar o Governo − e seus cuidados o obrigam à progressiva marginalização das Forças Armadas, inclusive fomentando disputas entre elas (especialmente jogando a Marinha contra as demais no que se refere à renovação de equipamento). Tudo isso visto e considerado, não será difícil dizer que o programa do Governo federal, visando a transformá-las em uma milícia está caminhando a passos largos, auxiliado pela organização dos que, nas PMs, pretendem desestabilizar, primeiro, os Governos estaduais e, depois, mostrar que só agirão na defesa lei e da ordem se suas reivindicações salariais forem atendidas. Uma vez compreendido que militar é uma categoria única, em oposição a civil, não importa a que corporação o militar pertença, na idéia de todos estará que “os Militares” devem subordinar-se a Governos eleitos e serão funcionários a serviço da “governabilidade” tanto local quanto mundial.

 

     A transformação das Forças Armadas dos países sob sua influência em milícia sempre foi o desejo e, mais que isso, o programa do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. O primeiro a enunciar esse desideratum foi o Sr. Robert Kennedy, ainda quando Procurador-Geral (Secretário da Justiça) em conferência que fez no primeiro Fórum das Américas realizado em São Paulo, creio que em 1968. Comprovando a importância que os Estados Unidos emprestam a essa transformação, estão os esforços dos Secretários da Defesa nas reuniões de Ministros da Defesa das Américas. Tudo isso, que estará de acordo com a “índole pacífica do povo brasileiro”, sendo posto, não mais é conveniente dizer “Não!” a essa proposta, que vem sendo considerada necessária. Os fatos, desde o Governo Collor, demonstram a qualquer bom entendedor que essa transformação está em curso − sem que os Chefes militares disso tomem consciência e manifestem, pelo menos, sua desejável desaprovação.

 

     O último passo poderá estar sendo dado agora, com o triunfo da tese do entrismo traduzida no chamado “Capitanismo”, movimento de Capitães que desejam que os Oficiais sejam tratados como cidadãos não sujeitos ao RDE, mas apenas à Constituição, lei maior. É a subversão absoluta do que se entende por uma organização militar e daquilo que um filósofo do Direito chamava de “segurança militar”. Não quero dizer que os líderes do Capitanismo sejam leninistas − talvez nem saibam qual seria o verdadeiro nome do camarada Lênin, o que pouco importa. Seria interessante, no entanto, que tomassem conhecimento de que a técnica do entrismo é, no entanto, dele mesmo, só depois seguida pelo III Reich, que plantou “quintas-colunas” em todos os países que pretendia ocupar.

 

     Talvez seja demais dizer que o Capitanismo é de inspiração dos grupos que controlam a grande Política do Governo federal desde o advento da “Nova República”. Mas os objetivos perseguidos, ainda que nos pareça não terem qualquer identidade, são os mesmos: fazer das Forças Armadas a grande milícia que, engrossando, como coadjuvante, a Força de Segurança Nacional em suas funções, vá acudir os Governos estaduais quando as PMS se rebelarem, ainda que possa também patrulhar o pré-sal para tentar impedir que piratas tomem as plataformas, ou pretenda protegê-las contra submarinos a serviço das grandes companhias de petróleo ou de foguetes lançados por grandes potências para destruí-las.

 

     Inspirado por quem quer que seja, neste momento, manifestando-se contra ou a favor do Governo federal, o Capitanismo deve merecer a maior atenção dos Chefes militares, e, queira ou não, do Ministro da Defesa. Por uma razão muito simples: afora todo seu conteúdo subversivo já demonstrado em suas ações, estamos diante de um movimento de inspiração, se não de organização internacional. No Blog Militar Legal de 30 de janeiro de 2012, podíamos ler: “Neste momento, o jovem oficial [o Capitão Luis Fernando Ribeiro de Souza, líder do movimento] está de malas prontas para viagem − secreta − para alguns países da América Latina e Caribe, com o objetivo de buscar a integração com outras organizações militares da região”. Lê-se mais: “Com a aproximação das eleições municipais de 2012, o Movimento Capitanista se espalha nacionalmente instalando-se em diversos partidos políticos (…) Com aporte financeiro razoável, de fontes diversas, eles procurarão apoiar candidatos civis ou militares (…) O Movimento já definiu as suas prioridades: eleger um aliado nas principais cidades de cada estado, fazendo um trampolim para 2014”.

 

     O quadro está montado e só não o vê na sua inteireza quem está cego para um olhar em perspectiva. Primeiro, a tentativa de desmoralização dos que integravam os órgãos de repressão contra as ameaças ao Estado. Em seguida, o constante engajamento das Forças Armadas na manutenção da lei e da ordem como suplementares à ação das Polícias. Depois, a luta para aprovar a Comissão da Verdade. Agora, o Capitanismo, que procura chegar à Câmara dos Deputados − com o apoio de todos aqueles militares, de qualquer patente, que hoje se vêem insatisfeitos com seus soldos.

 

     Há um dito, que copiei varias vezes: “há quem cometa suicídio porque tem medo de morrer”. Espero firmemente que esta não seja a predisposição política e psicológica, sobretudo política, de quem pode tomar decisões que salvem o que resta das Forças Armadas como legítimo instrumento do Estado e legítima voz ativa na condução das suas políticas.

 

     Embora morto, cremado e sepultado pelos que discutem, nas Forças Amadas, o seu próprio destino − se é que o discutem −, creio que é possível e é necessário buscar inspiração no General Góes Monteiro. Em seu voto durante uma reunião de Generais, apontou o desejo do Governo Vargas, em 1936, de fazer das Forças Armadas uma milícia e disse mais ou menos o seguinte: “Se o Governo quer, que o faça. O Exército não o fará”.

 

 

 

 

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