NOVOS RUMOS

 

 

     Na luta para reconstruir o Brasil, não tivemos o cuidado de verificar se falávamos ou não a mesma língua que falam aqueles que combatemos. Não tivemos esse cuidado, e o resultado foi que não saímos do universo semântico-político em que o adversário nos colocou ao longo dos anos — longos anos… Quero com isso dizer que ao falar de Mercado, descuramos da Política. E que ao insistir na condenação do Presidente Lula e dos participantes do Congresso, descuramos de tratar das Instituições. Se observarmos a imensa literatura que se produziu e ainda se produz sobre a crise brasileira, verificaremos que os trabalhos dedicados à análise das instituições são em número pequeno, se é que existem. No entanto, é delas que devemos cuidar, porque tudo aquilo que propusermos deverá ser resolvido no quadro destas ou daquelas instituições políticas.  

 

     Quando falo em Instituições tenho em vista o jogo entre Executivo e Legislativo, entre o Governo e o Corpo Político e Eleitoral, entre o Judiciário e os outros assim ditos Poderes do Estado.

 

     Comecemos por discutir a terminologia. Os bons tratadistas de Teoria do Estado já não dizem Poderes ao se referir a Executivo, Legislativo e Judiciário, mas sim “funções”. É que têm presente que, ao falar em “poderes do Estado harmônicos e independentes entre si”, na realidade fracionam o Estado — o que é impensável para quem tem a Soberania como dado de fato e irrevogável. O Estado é uno; o Governo pode permitir-se distribuir suas funções por três órgãos com independência e eventual harmonia.  

 

     Ao concentrarmos nossa atenção no Mercado, somos levados a discutir tudo o que se relaciona com a política econômica do País, o caráter privado ou estatal de algumas empresas ou de alguns setores produtivos (os chamados setores estratégicos), a taxa de juros e o regime de câmbio, o controle de preços e tudo o mais que pode ser colocado no escaninho com o rótulo “economia”. Como esses temas dizem respeito ao nosso dia a dia, dedicamo-nos a eles, esquecendo a Política — isto é, de quem faz as regras, de por que as faz e de quem e de como recebeu autorização para fazê-las. Ao condenarmos dia após dia o comportamento de parte (às vezes boa parte) dos membros do Congresso Nacional (não falo das Assembléias Legislativas ou das Câmaras Municipais) não nos damos conta de que os elegemos e que lhes demos, porque assim está escrito, o poder de fazer as leis que nos cerceiam as ações ou nos impõem determinados comportamentos. Eles as fazem — e apenas eles, discutindo-as ou não, e quando o Executivo não entope e bloqueia a pauta com Medidas Provisórias, que são leis. Se pensássemos de fato em Mercado, chegaríamos à conclusão de que se a economia deve ser de mercado, a Política deveria também ser, isto é, deveríamos chegar à conclusão de que os deputados e senadores não deveriam ter o privilégio, um verdadeiro monopólio, de apresentar e aprovar leis.  

 

     Já não me refiro às críticas ao Presidente da República. Ao fazê-las, não somos capazes muitas vezes de justificá-las com base em dados concretos ou fundados em um programa de governo próprio. Condenamos porque suspeitamos. E não discutimos se é possível, nesta fase de nosso crescimento econômico e desajuste social, o Chefe de Estado ser a mesma pessoa que o Chefe do Governo — a esta altura é conveniente dizer que não sou parlamentarista, preferindo o Presidencialismo de Gabinete, sobre o qual poderei falar num próximo artigo. Quando cuidamos do Presidente da República, não nos preocupamos com a forma de sua eleição (afinal, a democracia levou ao voto direto dos analfabetos e dos menores de 16 anos, inclusive) nem nos damos conta de que a Constituição de 1988, a “cidadã”, concentrou nas mãos do Presidente o poder de fazer lei com o nome de Medida Provisória, tornando o Legislativo praticamente sem função.  

 

     O Congresso, dizem os teóricos da Academia, deve existir para aprovar as Medidas Provisórias. Medidas Provisórias e Congresso existem, pela “cidadã”, para podermos dizer que vivemos numa democracia — e, dirão muitos de nós, para que deputados e senadores possam continuar fazendo das deles. No afã de condenar o “autoritarismo”, os constituintes de 1986 elaboraram uma Carta Magna pior, nesse aspecto, do que a Constituição de 1967 ou a emenda constitucional nº 1 de 1969. Aliás, a Constituição de 1988 não responde a situação real alguma, tanto assim que já tem 52 emendas para dor de cabeça dos estudantes de Direito e de quem esteja querendo estudar a evolução destas ou daquelas normas. Tudo em nome da democracia e do cidadão…

 

     Há mais — e apenas agora começamos a ter consciência do quão corporativo (no pior sentido) é o Estado brasileiro. O Presidente da República é julgado pelo Senado depois de a Câmara conceder autorização para tanto. E haja política e casuísmos nessa autorização e nesse julgamento. Os deputados e senadores são julgados (politicamente como o Presidente) por eles mesmos, e para que sejam punidos é preciso que haja um quorum determinado. Isso quer dizer que se faltar um voto para se atingir o quorum, o deputado ou senador acusado disto ou daquilo (tudo sendo enquadrado como falta de decoro parlamentar) será inocentado. Os Juízes e Ministros de Tribunais, idem, isto é, são julgados politicamente por seus pares. No caso do julgamento dos congressistas, o mais grave é que em sua defesa eles estão confundindo a opinião pública: “Não há provas!”, exclamam. Só que se esquecem de que o julgamento que os condenou não se fez com base em provas como se exige quando alguém está sendo julgado pela Justiça, mas que é um julgamento político. Isso quer dizer que, à luz dos indícios e do juízo particular de quem vota, o acusado deve ou não ser expulso do Congresso. A pena é política, isto é, exclusão do corpo eleitoral e suspensão dos direitos políticos e não financeira ou privativa da liberdade.  

 

     Admitida como correta a observação que fiz de início sobre o Estado, caberia decidir em que Poder (ou em que órgão) residiria a Soberania e que Poder (ou órgão) tomaria as decisões cruciais atinentes às funções básicas e próprias do Estado: a Territorial e de Defesa (zelar pela inviolabilidade das fronteiras e das instituições e garantir o Estado contra o assalto de seus inimigos), a de Coordenação (cuidar da harmonia entre os diferentes grupos sociais) e a Diplomático-Representativa (representar o Estado no Exterior e garantir a soberania nacional no intrincado jogo das relações internacionais). Caberia, igualmente, decidir a forma pela qual se dariam as eleições; se o Legislativo continuará com o monopólio de fazer leis; se Parlamentares e Juízes continuarão sendo julgados politicamente por seus pares.  

 

     O que proponho, pois, é que façamos cessar as discussões sobre o acerto ou o desacerto de votos que já foram depositados nas urnas e que cuidemos de discutir que instituições desejamos para o Brasil, para que, continuando, ele, uma democracia, possamos fazer da Política e não do Mercado nossa preocupação maior. O Mercado, convenhamos, deverá sempre ser subordinado a ela, a Política — ou então entregaremos nossos destinos a quem tiver mais poder financeiro ou econômico para ditar as normas que regerão nosso dia a dia e, muitas vezes, nossas relações com o Exterior.

  

 

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