UMA VISÃO HETERODOXA DO PROCESSO – 15

 

 

 

 

     O Governo do Marechal Castelo Branco deve ser examinado sem cólera nem parcialidade, única forma de podermos compreender o processo que se iniciou com a edição do Ato Institucional nº 1 fixando data para que o Governo da Revolução deixasse de ter poderes extraordinários.

 

     No campo militar, Castelo teve de enfrentar, logo no início, dois graves problemas. Um, as denúncias de que no IV Exército se praticava a tortura contra políticos e sindicalistas que haviam sido presos. Enviou o Chefe de sua Casa Militar, General Ernesto Geisel, ao Nordeste. Geisel foi, voltou e disse: “Não há tortura”. As denúncias cessaram. O problema maior foi a recusa do General Mourão, nomeado Comandante do IV Exército, em apresentar o Governador de Sergipe, Seixas Dória, ao Superior Tribunal Militar. A ordem fora dada porque chegara ao STM a notícia de que Dória tinha sido preso (o que era verdadeiro) e estava sendo torturado. Mourão recusou-se a obedecer à determinação do STM, criando uma crise. Castelo a resolveu politicamente: convidou Mourão para preencher uma vaga de Ministro que se abrira no Superior Tribunal Militar. Ao afastar-se Mourão, a crise deixou de existir.

 

     Conjurado o perigo iminente representado por Goulart, muitos dos grupos civis que se haviam oposto a seu Governo, e deram, desta ou daquela forma, sua contribuição ao movimento de Março, recolheram-se, considerando vencido o inimigo. A seus olhos, tudo se resolvera na derrubada de Goulart – uma vez decidida e feita, o Brasil voltaria à normalidade sem necessidade de maior preocupação com o futuro, a não ser com os problemas que se apresentariam na área econômica. Foi para essa área econômica, da mesma maneira que para o combate à corrupção e ao desmantelamento dos grupos que se opunham ao novo Governo ou se haviam organizado, “na lei ou na marra” como preconizara Brizola, para a implantação da República Sindicalista de Goulart, que se voltaram as atenções de Castelo. Se a busca de punir adversários políticos − alguns armados como se veio a descobrir − não provocou reações maiores no meio civil-popular, a luta contra a inflação despertou antagonismos até o fim do mandato de Castelo Branco e explicam o entusiasmo com que os empresários receberam a candidatura Costa e Silva.

 

     A reação à escolha de Roberto Campos para o Ministério do Planejamento dá a exata medida das dificuldades que Castelo teve de enfrentar. No mundo civil, a grita contra a política que Campos pôs em prática, firmemente apoiado por Castelo e Bulhões, Ministro da Fazenda, veio indicar que a oposição a essa política não passava apenas pelos que se haviam beneficiado com a má condução da economia no Governo Goulart. As vozes contrárias que se ouviam em diferentes setores do empresariado eram reproduzidas por Carlos Lacerda, que passou a ser feroz adversário de Roberto Campos, apelidado de Bob Fields por suas supostas ligações com grupos norte-americanos. No meio militar, especialmente em alguns pequenos grupos, a oposição a Campos tinha razões diversas se não contrárias: ele era comunista, como sua atitude no Consulado de Los Angeles, durante a crise em torno da pretensão da China Comunista de ocupar as ilhas de Quemoy e Matsu, demonstrava: reconhecera o direito da China àquelas ilhas. A oposição de Lacerda foi de tal forma áspera que Castelo se viu forçado a declarar que a política econômica era dele, Castelo, e de mais ninguém.

 

     Foi uma política dura. Para surpresa de muitos, o Governo não se preocupou com popularidade. A recessão de 1966, uma das maiores de que se teve notícia, colocou parte da população e praticamente todo o empresariado contra Castelo e Campos. Aos que consideravam Campos como o “enviado” do liberalismo para colocar ordem na economia segundo padrões monetaristas, passou despercebido que, no fim de sua gestão, ele criou um grupo de trabalho para elaborar um plano decenal de desenvolvimento − projeto logo esquecido no Governo Costa e Silva. Não se recordará, igualmente, que Campos encontrou dura oposição dos empresários paulistas a seu projeto de criar um imposto que taxasse aquilo que se chamou então de “sinais exteriores de riqueza”. Numa reunião com empresários, buscando convencê-los da necessidade e da justiça social do imposto, Campos ouviu uma frase que resume o sentimento do empresariado que batera palmas para a deposição de Goulart: “Ministro, Maquiavel já nos ensinou que lutamos não pelo fundamental, mas pelo supérfluo”. O projeto morreu na idéia… Igual oposição sentiu-se no meio dos proprietários rurais: o Estatuto da Terra, projeto de Castelo aprovado pelo Congresso, nunca foi posto em prática e morreu.

 

     O artigo 8º do Ato Institucional estabelecia que “os inquéritos e processos visando à apuração de responsabilidade pela prática de crimes contra o Estado ou seu patrimônio e a ordem política e social ou de atos da guerra revolucionária poderão ser instaurados individual ou coletivamente”. Para executá-lo, instauraram-se praticamente em todas as grandes unidades militares Inquéritos Policiais Militares destinados a apurar responsabilidades de civis muitas vezes proeminentes. Um desses IPMs teve como objetivo apurar as denúncias de corrupção na alfândega de Cumbica e outro foi dirigido para a Caixa Econômica Federal de São Paulo. Os nomes de Mazzilli e Auro de Moura Andrade vieram à tona. Para orientar seus responsáveis e em certa medida controlá-los, criou-se uma Comissão Geral de Investigações. Foi nesses IPMs que se concentrou, por assim dizer, o ardor revolucionário, criando muitas vezes situações embaraçosas para o Governo Castelo Branco. Foi neles, com toda a certeza, que ganhou corpo o apoio a Costa e Silva, quando se lançou candidato − e deles se generalizou, criando, como se viu depois, situação difícil para Castelo que pretendia ser sucedido por um civil.

 

     Da perspectiva de hoje, é possível dizer que, mais que um revolucionário, Castelo era um militar formado ideologicamente pela visão que as elites civis tinham do Brasil: uma visão liberal, se tivermos em conta que o liberalismo aqui nascera e florescera nos jardins das casas coloniais, como afirmou certa feita Armando de Sales Oliveira. A análise da superposição dessa visão àquela que construíra na grande escola do Exército permite considerar seu pensamento como inspirado pelo que chamo de liberal-militarismo. Era sem dúvida um militar, formado pelos rígidos padrões que regem a instituição militar. Mas era um Oficial que tinha formado sua visão das coisas pela convicção de que às Forças Armadas, quando intervinham na Grande Política, não cabia outra coisa senão sanear o Governo e devolver aos civis a tarefa de construir o Brasil. Seu Governo foi, desde a escolha do Vice-Presidente (José Maria Alkmin, filho dileto do PSD mineiro), a tentativa de compatibilizar o movimento de Março com a velha classe política. Note-se que, ao dissolver os Partidos com o Ato Institucional nº 2, cuidou de criar dois novos, cada um deles podendo apresentar-se com três sublegendas, o que fez que a luta eleitoral se travasse, a partir daí, sempre em torno de seis Partidos. Ao criar o que se chamou Arena e MDB, pensava seguramente que os velhos políticos, as velhas raposas, mudariam seu comportamento pelo fato de terem deixado de existir os treze Partidos de 1964… Em certo sentido, podemos dizer que foi fiel ao mandato que o Comando Revolucionário conferiu ao Presidente da República e à Revolução: respeitar a Constituição de 1946, exceto no que se refere aos poderes do Presidente da República para que ele pudesse “cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira…”. Mesmo quando chegou ao extremo de cassar os direitos políticos de Adhemar de Barros, que apoiara o movimento de Março, determinou que o Vice-Governador eleito, Laudo Natel, respondesse pelo mandato popular até o seu término.

 

     Quando nos debruçamos sobre o Governo Castelo a fim de vê-lo à luz refletida dos fatos, não podemos fugir à lembrança do General Góes Monteiro. Em carta que este escreve a Sobral Pinto em 1946, está a pergunta, dolorosa, que deve ter angustiado Castelo e o ter levado a compor-se com a velha política: “Diz V.Exa. − escreve Góes − que nos cabia o dever de melhorar as instituições vigentes em 1930 e não subvertê-las ou substituí-las. O pensamento revolucionário, tentando dar ao movimento de 1930 uma densidade maior, transformando-o numa revolução, era precisamente contrário a essa tese que agora volta à baila. E volta porque as desgraças passadas se recordam com saudade; porque o ambiente internacional mudou, e porque a Revolução falhou na conquista da maioria dos objetivos visados. Mas onde haveríamos de achar os homens para melhorar as instituições representativas? Não estavam mortos os melhores apóstolos do regime?”.

 

     As ações inspiradas no liberal-militarismo têm seu lado perverso. Nos seus fundamentos, o liberalismo é universal. A visão que o militar tem do mundo é nacional. O pensamento liberal não dá um lugar ao militar nas instituições do Estado − ele é apenas o executor das políticas traçadas pelos Governos civis. Se a isso juntarmos o temor de Castelo e de muitos que o cercavam de que o movimento de Março fizesse o Exército brasileiro ser considerado igual aos latino-americanos, que davam golpes de Estado para permanecer no poder, entender-se-á a política militar de Castelo Branco. Da mesma maneira que seu empenho em deixar o Governo com uma nova Constituição votada pelo Congresso e fazer um sucessor civil.

 

     Apesar do lema do Governo Castelo ter sido “segurança e desenvolvimento”, ele nunca deixou de considerar que a modernização das Forças Armadas exigiria um esforço financeiro que o País, a seu ver, não estava em condições de fazer. A vontade de manter o equilíbrio fiscal levou-o a cortar o orçamento das Forças Armadas, política seguida por todos os que até hoje o sucederam. Dois dias antes de deixar o Governo, em conferência que fez na Escola Superior de Guerra, deixou claro duas coisas: a defesa é associativa (pensando nos países que compunham a OEA, Estados Unidos, sobretudo), e o Brasil não tem condições de desenvolver um projeto nuclear seu por falta de recursos e porque a defesa contra uma ameaça nuclear será feita pelos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, sustentou a oportunidade da criação de uma Força Interamericana de Paz cuja função seria evitar que a subversão triunfasse nas Américas − mas não os movimentos sociais autenticamente nacionais.

 

     O receio de que o Exército Brasileiro fosse confundido com um exército qualquer da América do Sul e o de que, nele, surgisse um totem levaram-no a modificar radicalmente a política de promoções das Forças Armadas. A introdução da obrigatoriedade de respeitar-se o duplo critério de idade para permanecer no posto e para ser promovido a posto mais elevado cortou a possibilidade de que surgissem, como no passado, lideranças políticas nas Forças Armadas, especialmente no Exército. Se a essa norma juntarmos o decreto da Junta Militar que estabeleceu a chamada “expulsória” (a prerrogativa dos Ministros militares de decidirem quem passaria para a Reserva), teremos uma política, vigente até hoje, que varreu da História a possibilidade de surgirem figuras como Góes Monteiro, Juarez Távora, Canrobert Pereira da Costa, Eduardo Gomes e outros.

 

     O Ato Institucional nº 2 significou um rompimento dos elos que ligavam estreitamente as Forças Armadas ao mundo político civil. A extinção dos Partidos que, no dizer de Paulo Brossard, começavam a adquirir, 20 anos depois de sua criação, corpo e doutrina, fez da Política uma má escola, em que o êxito nas urnas dependeu, sempre, da boa vontade do Governo. Liberal, o Governo Castelo não impôs interventores, exceto em Goiás, mas estabeleceu que os próximos Governadores seriam eleitos pelas Assembléias Legislativas. Onde o MDB, oposição, tinha maioria, como no Rio Grande do Sul, cassou mandatos dos oposicionistas para permitir que os candidatos do Planalto fossem eleitos.

 

     Ao mesmo tempo, o Ato significou uma capitulação às forças militares que apoiavam a candidatura Costa e Silva. Foram essas forças que, diante da agitação que se promovia nas grandes capitais e do atentado no aeroporto de Guararapes, ainda em 1966 − afora a estupidez do discurso de um Deputado do MDB que atingiu a honorabilidade das Forças Armadas em geral − levaram à edição do Ato Institucional nº 5.

 

– segue  –     

 

 

 

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