UMA VISÃO HETERODOXA DO PROCESSO – 5

 

 

 

 

 

     Terminei o artigo anterior com a frase: “…a partir do momento histórico em que os caminhos se fecharam para os grupos sociais excluídos do Poder, vale dizer do Governo − quero dizer especificamente, no Estado Novo − os excluídos do Poder vão buscar no Exército os seus totens”. Dizendo isso, quero destacar que foram grupos civis os que criaram os totens − exceto Góes Monteiro, que o foi por sua própria atuação político-militar.

 

     A historiografia consagra os 18 do Forte como primeiro sinal de intervenção militar na República Velha, classificando-o como oposição às práticas oligárquicas da República de 1889. Reflitamos um instante sobre o Tenentismo da perspectiva da organização e da propaganda. Em 05 de julho de 1922, Oficiais liderados pelo Capitão Euclides Hermes da Fonseca levantaram-se – no que foram acompanhados pela Escola Militar – em protesto contra a solução dada pelo Governo à crise que foi aberta com as famosas Cartas Falsas, atribuídas Arthur Bernardes, candidato à Presidência da República no jogo de alternância “café com leite” que havia sido interrompido por Hermes da Fonseca de 1910 a 1914. Seu adversário era Nilo Peçanha, candidato de uma coligação Rio, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul e apoiado pelo Exército. Uma das cartas publicadas em 1921 pelo Correio da Manhã tanto apontava Hermes da Fonseca, já antes vinculado por Rui Barbosa ao “militarismo”, como um “sargentão sem compostura” quanto se referia ao Exército como “essa canalha [que] precisa de uma reprimenda para entrar na disciplina”. Os ânimos mais se acirraram após Hermes da Fonseca, nessa ocasião Presidente do Clube Militar, ter recomendado a não participação do Exército na repressão, no Recife, às manifestações populares de desagrado com a eleição de Bernardes. O Marechal foi preso e o Clube Militar fechado em 02 de julho de 1922. Em meio a isso, Pandiá Calógeras, um civil, era nomeado Ministro da Guerra. Esses fatos a bem dizer desapareceram da história do Tenentismo.

 

     Cabe perguntar: que grupos civis, organizados, estavam por trás do movimento? Um único civil, o Engenheiro Otávio Correia, aderiu ao movimento dos Tenentes – mas já na sua marcha final pela praia de Copacabana. Não se tem notícia de outros civis exceto como observadores e/ou comentadores ex post, tal como Assis Chateaubriand; nem temos notícia, muito menos, de uma propaganda que os tivesse levado à revolta. O que permite concluir que grupos civis, intelectuais, sem dúvida, criaram, depois de 1930, a lenda de que os Tenentes eram a favor de um sistema político diferente. Uma visão de Estado diferenciada comungada por alguns setores da tropa não a justifica. Em 1922 não houve qualquer manifestação em favor da alteração do sistema político. Já em 1924, pelo contrário, os revoltosos lançaram manifesto dizendo a que vinham − e nele ficava claro que pelo menos uma das mudanças que pretendiam não seria liberal-democrata, pois defendiam o voto censitário. A Coluna Prestes foi episodio à parte que a propaganda, prestista ou não, permitiu que se firmasse na lenda do “Tenentismo democrático”. Observe-se, porém, que, fosse em 1922, 1924 ou na Coluna, não houve totens − e ainda hoje se discute se os méritos militares dessa última foram devidos a Luís Carlos Prestes ou a Miguel Costa, seu Chefe de Estado Maior, digamos assim.

 

     Eduardo Gomes é o primeiro totem que se cria em oposição a Vargas − ditador em 1937 e Presidente eleito em 1950. Os que se debruçaram sobre o período que vai de 1942, quando o Brasil declara guerra às potências do Eixo, a 1945 e os que exaltaram a oposição de Eduardo Gomes à ditadura de 1937 não atentaram para o depoimento que o General Góes Monteiro, já sem poder e influência, deu sobre sua vida militar e política. Tivessem lido com mais atenção o que afirmou, teriam observado que, ao relatar a reação ao 10 de novembro, deixa bem claro que o Coronel Eduardo Gomes (a FAB ainda não fora criada) veio até ele protestar não contra o fechamento do Congresso e a ditadura, mas contra o não ter sido avisado com antecedência do que iria ocorrer. Para bem ajuizar das coisas, é preciso lembrar que o então Coronel Mourão Filho, tão logo publicado o depoimento de Góes Monteiro, requereu Conselho de Justificação para deixar claro que as referências de Góes à sua participação no Plano Cohen − que servira de pretexto para o golpe de Estado − eram mentirosas. O Conselho de Justificação o julgou e ele, Coronel, venceu o embate contra o General Góes Monteiro, à época dos fatos ainda com grande prestígio. Eduardo Gomes silenciou.

 

     Deixemos a participação do Brasil na Segunda Guerra mundial para logo mais e nos fixemos um momento na conduta do General Eurico Gaspar Dutra. Ministro da Guerra, participou de reuniões com Vargas para assentar pormenores do golpe. No dia 10 de novembro de 1937, fechado o Congresso por tropa da Polícia Militar do Distrito Federal − não do Exército, note-se − comunica ao Estado Maior que havia uma nova Constituição, que os entendidos reputavam muito boa, ressaltando que ela previa a realização de plebiscito para aprová-la no prazo de cinco anos. Em 1942, na comemoração do quinto aniversário do golpe, fez elogio do Governo que se instalara. Mais tarde, bem mais tarde, ao falar de sua participação na vida política nacional, insiste em dizer que se colocara contra o Estado Novo porque Vargas não cumprira o que estava assente na Constituição e não realizara o plebiscito.

 

     A deposição de Vargas no dia 29 de outubro de 1945 marca o nadir de Góes Monteiro. Ministro da Guerra, sente-se traído por Getúlio que nomeara, sem consultá-lo, seu irmão Benjamim Vargas como Chefe de Polícia do Distrito Federal. Para examinar a situação, reúne no Ministério alguns Generais e Almirantes e os dois candidatos, Dutra e Eduardo Gomes. Decide-se, então, que Vargas não poderá continuar na chefia do Governo. A intervenção de Góes é decisiva para garantir que Vargas não sofrerá qualquer constrangimento depois de deposto. O General Cordeiro de Farias foi encarregado de transmitir a Vargas a decisão das Forças Armadas. Voltando ao Ministério da Guerra, dá conta do êxito de sua missão, com o que se coloca a todos a questão: que fazer, agora que o País não tinha mais Chefe de Governo? Para surpresa de Góes Monteiro, Dutra propõe que se observe a Constituição (?) e que o Presidente do Supremo Tribunal Federal assuma interinamente a Presidência da República até a posse do Presidente a ser eleito a 3 de dezembro. Sua proposta é logo secundada por Eduardo Gomes e pelos outros Generais. Góes Monteiro silenciou.

 

     Considerando o choque de idéias, a participação na campanha da Itália, de 1942 a 1945, foi importante para a formação do ethos militar. A FEB chegou à Itália com o equipamento, a organização e a doutrina militar de um Exército que desde a Guerra do Paraguai não entrara em guerra digamos moderna. É de refletir sobre o choque que todos os Oficiais tiveram ao entrar em contato com a organização e a doutrina do V Exército norte-americano. Choque ainda mais profundo, quando todos os expedicionários passaram a viver no clima de um exército de um país democrático (ainda que nele houvesse segregação racial) e tivessem sido atingidos (essa a expressão) pela propaganda norte-americana contra o nazismo − portanto contra as ditaduras. Recordo-me de Professor da USP, que esteve na FEB, contando como, servindo no setor encarregado da confecção do jornal que se distribuía para a tropa, fazia questão de assinalar, nos textos, que a FEB estava combatendo a ditadura − e insinuando que havia um regime igual no Brasil. Em suas memórias, o General Mourão Filho, ao falar sobre a FEB (ele combateu na Itália), relata o ostracismo a que esteve condenado por parte de companheiros de farda porque era tido, então, como autor do Plano Cohen − e o grande adversário que então encontrou foi Golbery do Couto e Silva.

 

     A FEB, cuja participação na queda de Vargas em 1945 não teve a meu ver a importância que se lhe atribui, não criou totens. Seu Comandante, o General Mascarenhas de Moraes é promovido a Marechal, passa à Reserva e não se tem notícia dele participando dos movimentos militares de 1945 a 1964. O Chefe de Estado Maior, Coronel Lima Brainer, passou à Reserva e seu livro de memórias desapareceu das livrarias. Castelo Branco e Amaury Kruel, Chefes das Secções de Operações e Informações, fizeram sua carreira militar sem maior destaque político até 1964. O Coronel Golbery será promovido a General ao passar à Reserva em 1961.

 

     Quando o mundo civil foi buscar nas Forças Armadas quem se opusesse a Vargas e JK, encontraram o Brigadeiro Eduardo Gomes e o General Juarez Távora, que foram criações do liberalismo euro-brasileiro. Em 1955, tendo sido derrotado nas eleições de 1945 e 1950, Eduardo Gomes foi substituído, contra a oposição de Carlos Lacerda, por Juarez Távora como alternativa militar. Só em 1964, não antes, no que considero uma ilusão nascida da esperança mais que da realidade, imaginou-se que Castelo Branco representasse os grupos que se opunham a Jango e ao esquema político dominante, mesmo no Exército.

 

     É preciso não nos esquecer de que na Itália, além da propaganda norte-americana do V Exército do General Mark Clark, muitos Oficiais devem ter ouvido falar dos partigiani e das vitórias da União Soviética devidas ao socialismo de Stalin, “guia genial de todos os povos”. E de que, ao fim da guerra, o Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a URSS. A chegada do Embaixador soviético ao Rio foi saudada por muitos, inclusive democratas, e o slogan que se repetia era “O mundo marcha para o socialismo”. Foram as vitórias soviéticas, especialmente depois de Stalingrado − resistência celebrada diariamente no rádio: “Stalingrado continua firme” − e a esperança de vê-lo formar na oposição a Vargas que levaram os liberal-democratas, em 1945, a saudar Prestes como seu grande aliado contra o ditador. Basta ler o noticiário sobre o grande comício no estádio do Pacaembu, celebrando a soltura de Prestes, para ver como 1935 fora esquecido por quantos formaram com Vargas na defesa da Propriedade e da Ordem.

 

     Reflitamos um instante nesta combinação (química, repito) de idéias que se processa no laboratório brasileiro: o autoritarismo europeu, o liberalismo euro-brasileiro, o socialismo soviético triunfante contra a ditadura nazista. Outro elemento deve ser acrescentado à combinação: a idéia que se tem dos Estados Unidos e de seu Exército. Nada melhor, para evidenciar como essa idéia penetrou fundo, do que citar dois fatos: a homenagem prestada pelo Congresso ao General Eisenhower, enquanto Comandante Supremo das Forças que combateram na Europa Ocidental e a fundação da Escola Superior de Guerra, que foi buscar seu modelo numa instituição militar norte-americana. E acrescentemos, aos elementos em combinação, a pregação da Igreja Católica e a organização familiar que resistia ao embate da urbanização descontrolada e da industrialização crescente. É nesse quadro que o Exército vê formados seus Chefes a partir de outubro de 1945. Chefes que não escondem suas preferências político-ideológicas. E é nesse quadro, igualmente, que a partir de 1954, o Partido Fardado dá sinais de estar presente.

 

  – segue –   

 

 

 

 

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