UMA VISÃO HETERODOXA DO PROCESSO – 6

 

 

 

 

     Assim comentei no artigo anterior: “Reflitamos um instante nesta combinação (química, repito) de idéias que se processa no laboratório brasileiro: (…) É nesse quadro que o Exército vê formados seus Chefes a partir de outubro de 1945. Chefes que não escondem suas preferências político-ideológicas. E é nesse quadro, igualmente, que a partir de 1954, o Partido Fardado dá sinais de estar presente.”

 

     O Governo do Ministro José Linhares, Presidente do Supremo Tribunal Federal, concluiu a obra do Estado Novo, que, em seus estertores, convocara eleições para dezembro de 1945. Eleitos e empossados o Presidente Eurico Gaspar Dutra, Senado e Câmara − o Partido Comunista Brasileiro representando-se na Assembléia Constituinte, que depois se transformaria em Congresso Nacional, Prestes eleito Senador −, travou-se o grande debate: qual Constituição deverá reger o País até que a Assembléia Constituinte promulgue uma nova que reflita a realidade pós-ditadura? Um cronista mal-humorado diria que se defrontaram dois grandes Partidos: o dos “idealistas”, como Oliveira Vianna chamara quantos que, em 1891, acreditaram que uma Constituição perfeita do ponto de vista formal e doutrinário (liberal) seria capaz de resolver todos os problemas do País, e os realistas, mais atentos à balança de poder que se construíra no 29 de outubro. Os primeiros ora pretendiam a volta à Constituição de 1934, rasgada em 1937, ora, cedendo aos seus radicais, elegiam a Constituição de 1891 como a melhor que serviria ao Brasil durante a transição. Os realistas simplesmente mostraram as dificuldades que seriam criadas no campo político, jurídico e mesmo econômico-social e insistiram em que o Presidente da República governasse com os poderes da Carta de 1937, podendo, inclusive, editar decretos-lei, pois a Assembléia Constituinte não podia fazer leis – sua função exclusiva era elaborar a nova Carta Magna. Assim se argumentou e assim, se fez. Até 11 setembro de 1946, o Brasil foi governado sob a égide da Carta de 1937, a “Polaca”.

 

     A República que se inaugurou em 1946 não levantou âncoras rumo ao futuro. Deitou-as sobre o passado e fez de Vargas, Senador eleito por dois Estados da Federação, que se recusara a jurar a Constituição ao tomar posse, o Inimigo. Como se o período em que Dutra governou com a Carta de 1937 não tivesse sido bastante para acalmar mares revoltos já antes do 29 de outubro, com movimentos de rua reunidos para aclamar o ditador aos gritos de ”Queremos Getúlio” ou “Constituinte com Getúlio”, temeu-se que o agora Senador pelo Rio Grande do Sul e por São Paulo voltasse a perturbar a paz neo-republicana. A solução encontrada foi a de que os grandes Partidos (PSD, UDN e PR) selassem um pacto de concórdia, distribuindo entre si o poder simbolizado pela ocupação destes ou daqueles Ministérios.

 

     As diferentes facções do Partido da Ordem ensarilham temporariamente as armas para voltar a dissentir abertamente quando se vislumbrou no horizonte a necessidade de encontrar um candidato à Presidência em 1950. Nesse meio tempo, o Partido Comunista foi colocado na ilegalidade, seus representantes nas Casas Legislativas em todo Brasil tiveram seus mandatos cassados e, já em 1947, o Brasil rompia relações com a União Soviética.

 

     O Inimigo, porém, existia: em 1950, Vargas candidata-se à Presidência pelo PTB, excluído do pacto dos grandes Partidos. Sua candidatura dividiu a opinião política militante. De um lado, os defensores das normas vigentes; de outro, os que consideravam que o Chefe do Estado Novo, de uma ditadura de oito anos, não poderia candidatar-se. É quando um General, voz isolada, intervém e garante-lhe a candidatura.

 

     É nas eleições de 1950 que se confirma a fragilidade dos Partidos políticos brasileiros, que se havia entrevisto em 1945, mas para a qual poucos, se os houve, haviam prestado atenção.

 

     Como se apresentou, em 1945, o quadro partidário? Melhor dizendo, quais eram os “quadros” − para usar expressão que depois se consagrou − dos Partidos que se organizaram para disputar as eleições de outubro daquele ano? O PTB tinha apenas um nome capaz de enfrentar as urnas: Getúlio Vargas. O Partido Comunista, depois de anos na ilegalidade, foi buscar Iedo Fiúza, nome sem expressão. A UDN e o PSD, este, mesmo que organizado para o pleito, aquela querendo marcar sua oposição ao Estado Novo e ao ditador, não tinham quem se dispusesse a enfrentar o julgamento das urnas − mesmo porque a abstinência forçada desde 1937 não lhes permitira encontrar na sociedade quem pudesse representar os interesses materiais que começavam a distinguir-se, quando mais esse interesse não fosse que a vontade de, cada um dos grupos, ocupar o poder no Estado. A solução que então se encontrou foi convocar os militares − o Brigadeiro Eduardo Gomes e o General Eurico Gaspar Dutra − para representar a sociedade em seu desejo de renovação democrática. Ao assim proceder, reconheceram expressamente que estavam em concordata político-organizatória.

 

     Em 1950, o PSD pôde renovar sua hipoteca contra o futuro, lançando Cristiano Machado para opor-se a Vargas − mas deixando vencer os títulos hipotecários na eleição, quando praticamente abandonou o candidato e sufragou Vargas, permitindo que se criasse o termo “cristianização” para designar o fato do Partido conduzir, conscientemente, seu candidato à derrota. A UDN não teve alternativa sequer para realizar a baixa política do PSD e lançou o brigadeiro Eduardo Gomes para nova derrota.

 

     Nas eleições de 1955, a UDN novamente se viu sem quadros e foi, de novo, buscar nas Forças Armadas o seu candidato: o General Juarez Távora. O PSD recuperou-se e, em Juscelino, encontrou quem lhe abrisse amplamente as portas do poder. Em 1960, o PSD abre falência e vai buscar no Exército o General Teixeira Lott, que terá João Goulart como Vice-Presidente. Nesse mesmo ano, a UDN também vê sua falência decretada − em grande medida porque Lacerda jogou tudo contra a candidatura natural do Partido, que era Juracy Magalhães, e conseguiu impor a de Jânio Quadros.

 

     Os grandes Partidos não formaram quadros capazes, numa disputa eleitoral relativamente livre, de sustentar seus programas. Mais do que isso: na disputa pelo poder, sem quadros, recorrem ao Exército ou à Aeronáutica pretendendo afirmar sua vontade e defender seus interesses. Consideram possível fazer dos Generais os seus “commis”. Ou, em linguagem talvez mais dura, desejam ser os ventríloquos no teatro da grande política. Esse é o cenário, de 1945 a 1960, em que a divisão dos Chefes militares se torna evidente e no qual surge, assumindo às vezes o principal papel na tragédia, o Partido Fardado.

 

     – segue – 

 

 

 

 

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